2 de dezembro de 2022

GHOSTING

Os seres humanos têm mais de um lado.

Rachel Pollack


O amor envernizado pelo nunca.

Natália Timerman



Quando três atendimentos seguidos trazem a mesma questão, pouca atenção é dada. Acontece. Mas quando as três leituras, cada uma para um consulente diferente, apresentam as mesmíssimas cartas para essa mesma questão, o intérprete se surpreende. E olha que é difícil um oraculista se assustar. As três perguntas, que são uma só, eram a respeito do comportamento da pessoa que não voltou mais. E a análise, que sempre se modifica de acordo com o contexto — regente excelso de toda interpretação oracular realmente útil —, convergiu de forma assustadora. É só me acompanhar que eu conto. Aliás, se você está aqui, talvez precise ler e saber a respeito. Mesmo. Confie.




A SACERDOTISA + OITO DE COPAS = GHOSTING



De novo: uma pergunta, feita por três pessoas diferentes, rendeu essas duas cartas. Não é comum esse fenômeno. E aplico um par porque gosto de um Arcano Maior e um Menor: a riqueza de detalhes se garante e a interpretação alimenta o consulente com o que ele precisa (não bem com o que ele quer) saber. São sempre duas imagens complexas, muitos símbolos a serem administrados. Um par de arranjos simbólicos que se complementa e se traduz, por mais difícil que pareça. Sempre um senhor desafio — tipo um relacionamento abortado sem aviso prévio.


“Essa pessoa está fazendo ghosting”, foi a minha resposta a partir da segunda consulta. Já suspeitava na primeira, pois a combinação ilustrava o meio que óbvio: a pessoa, motivo da consulta, preferiu silenciar-se e afastar-se. Simples assim. “Bem covarde assim”, concluiu a pessoa-consulente. Pois é, covarde assim, dadas as cartas da postura enclausurada e de certo modo afastada da realidade (A Sacerdotisa) e que decide bater em retirada, independente do que estava sendo construído em termos afetivos (Oito de Copas). Em um baralho bem mais antigo que a obra-prima de Pamela Smith, talvez fique mais difícil visualizar a cena e chegar a esse consenso, mas está tudo lá. Garanto.




A dupla fantasmagórica na versão de Marselha
Camoin & Jodorowsky, 1998



Sim, tudo na Cartomancia é questão de contexto. Sabe-se, respeita-se. Essa palavra preciosa, esse poder absoluto que se instaura na medida em que se embaralha as cartas. Nunca uma leitura é a mesma, mesmo que as cartas sejam. Aprendemos assim. Eu ensino assim. Mas nunca é muito tempo, e esse exato contexto, de três pessoas diferentes com a mesma pergunta idêntica e as mesmas cartas para respondê-las, nos joga no óbvio: as três pessoas  preferiram se afastar. Sumiram. Decidiram "dar um perdido", na linguagem direta. 


Para isso já existe esse termo nos melhores dicionários: ghosting, o mesmo que tornar-se um fantasma, já que o amante-algoz pode bloquear o contato, silenciar conversas e até mesmo trocar de número celular ou perfil em redes sociais — tudo para sustentar um fim de sua parte, ainda que não declarado nem trabalhado com a outra parte, geralmente interessada e perdida. Um fenômeno do nosso tempo, cada vez mais comum. E cruel, por vezes.





Gabrielle Lamontagne



O ghost é aquele que some, silencia conversas e não responde a nada do que você manda. Mas te vê. Te acompanha, como uma presença quase invisível, pelas observações de postagens ou pelas raras curtidas que pode dar para se fazer presente de algum jeito. Quando não curte ou interage no mínimo do mínimo, só orbita: visualiza stories, confere secretamente suas redes sociais e atua como stalker no silêncio profundo do seu canto. Não faz nada além disso. Por trás de uma quietude misteriosa que julgam ser resposta óbvia — “não estou disponível, não quero mais, foi um erro, prefiro deixar assim” — tende a haver uma pessoa emocionalmente destruída, imatura ou medíocre. 

    

Podemos ir (e vamos) fundo na interpretação das cartas. A Sacerdotisa é nossa musa impassível, a mãe espiritual, a guia interna. Tipo fada-madrinha, metáfora para o nosso potencial adormecido para materializar os próprios desejos. Lembro de Rachel Pollack, na mais nova edição dos Setenta e Oito Graus de Sabedoria (confira clicando aqui), encarando esse arcano como "o potencial em nossa vida — possibilidades muito intensas que não realizamos, embora sejamos capazes de senti-las como possíveis". Essa pode bem ser uma das convicções que o agente do ghosting carrega: o que bem poderia ser, mas não será. Será? O que sabemos é que "a ação deve acontecer em seguida, do contrário, o potencial nunca se realizará". Se Pollack diz, vale considerar. 




O Oito de Copas 
e cena de Persona (1966), de Ingmar Bergman


Já o Oito de Copas é essa paisagem quieta, o advento da evasão. Ainda que a carta tenha cores, para mim sempre será a cena de algum filme de Bergman — quase sempre uma arquitetura da despedida. É um arcano frio e húmido, como o sereno caindo em silêncio. Como o que não é, mas que poderia ter sido.


Impossível não notar o eclipse cravado à esquerda do nosso desertor. Se eclipses não são fofos nem na Astrologia, alguém acha que seriam aqui? Ele é o emblema de "uma desaparição", isto é, ele marca o "ocultamento acidental da luz", segundo Chevalier e Gheerbrant, no precioso Dicionário de Símbolos. Mau agouro? Assim no céu como na terra. Era dia, e a lua se pôs à frente do sol — o emocional, escrevendo em linhas tortas e rochosas, se sobrepondo ao claro racional.




Escorrem lágrimas da Grande Senhora 

ou é impressão (nossa)?


A pessoa deixa todas as taças em pé (tudo parecia bem, e talvez até estivesse muito bem), e bem assim se prontifica  a sair, desligar-se, desaparecer, declarar (declara?) um rompimento sem qualquer explicação. Se para alguns é uma lâmina de peregrinação, de sombrias jornadas interiores ou de passeios noturnos pela solidão, para outros é, indefectivelmente, sinal de desistência, fuga, abandono. Não verás coração algum, visto que terra desolada.


Se me atenho ao baralho de Aleister Crowley e Frieda Harris, o Oito de Copas é chamado de INDOLÊNCIA. Tenho um senhor stellium em Escorpião e Mercúrio em Sagitário, então vou mais fundo, até chegar no osso da palavra (que prazer a etimologia, ainda mais quando ela confirma conceitos): se o subtítulo do arcano evoca apatia, negligência, ociosidade, preguiça, insensibilidade, a raiz latina indolentia significa ‘ausência de dor’. Pois é. O que sente, de fato, alguém que do nada abandona alguém?





THOTH TAROT
idealizado por Crowley e gerado por Lady Harris


Se ainda me atenho às duplas de Arcanos Maiores e Menores, confirmo que o Oito de Copas, quando em outros tantos possíveis contextos, (felizes ou não), pode atenuar ou mesmo anestesiar o efeito do Maior. Acontece. E seu título esotérico, dado por MacGregor Mathers e difundido pela Golden Dawn, também nos mantém nessa estrada perdida: Senhor do Sucesso Abandonado. E não é que tinha tudo para dar certo? Tinha. Tínhamos mesmo.


Ghosting é um termo interessante porque fala obviamente de fantasma. A Sacerdotisa pode até nos oferecer alguns insights, levando em conta sua labuta fechada, seu cotidiano restrito, sua vida hermética. A conduta de uma viúva, uma mulher casta, uma moralista. Também prefiro as abordagens que tomam este arcano como verdadeira sacerdotisa, senhora da terra, da água e da lua, mas aqui pensemos em alguém com suas razões e confusões, a posição estática, o espectro de uma freira com sua vida reclusa. E, se me permito forçar um pouco a barra das analogias, podemos ver a pessoa que pratica o ghosting como uma espécie de entidade: A Freira, um dos fenômenos do terror contemporâneo, nos serve bem. O demônio Valak toma a forma de uma madre superiora que jamais fala — típico do ghosting, não? Só assombra. E some.





PANIC TAROT, de Technicolormoth
e cena de A Freira (New Line, 2018)


Não à toa, uma nova modalidade de ghosting é o chamado haunting, que funciona de fato como uma assombração: a pessoa vê tudo o que você faz e posta, mas nunca se manifesta. Como fica a cabeça (e o coração, meus deuses) da pessoa que é vista por quem ama ou deseja e é ignorada sumariamente se aborda ou manda mensagem, por exemplo? A Sacerdotisa, rainha do mistério, aqui representa o comportamento ausente de quem parece levar um vida selada, que se exime, se poupa, se fecha e se deixa à mercê do próprio medo e imaturidade. É irônico, porque seu outro lado é a pura e segura introspecção, a viagem interior que traz calma, domínio sobre o próprio oceano interno (as emoções) e a verdadeira sabedoria. Não se menospreza o alcance da meditação nem a força de quem reza. Mas se ela sabe ser emocionalmente coerente, também pode ser pragmaticamente fantasmagórica.


"Fantasma" vem do latim phantasmatos, "imaginação", "devaneio". Ficaríamos umas boas horas nesse encontro, à luz de Lacan, falando sobre o fantasma de um e o fantasma do outro — o meu enquadramento, minha inexorável necessidade de ser desejado e minha idealização do outro, essa forma sem matéria, que parece deturpar o fluxo natural das coisas, já que não se mostra mais desejante. Como pode? Mas fiquemos com as cartas e evoquemos uma outra, talvez propícia aos três casos (e presente neles, me lembro bem): o Sete de Copas, a carta da fantasia, das altas expectativas. “Se tudo vai bem, como segurar a vontade de fazer tudo ser perfeito?” Impossível. Copas, aliás, é o reino mais perigoso do Tarot; ele é repleto de delícias e abismos. Não é assim a paixão, às vezes? Há de se ter cuidado com o que parece tão promissor até que a morte não nos separe.





O Sete de Copas de Waite e Pamela Smith
Copo vazio (todavia, 2021)


Mas em vez de taças transbordando de maravilhas, o ghosting também nos faz crer que dentro delas pode não haver nada. Um caso recente da literatura brasileira é o livro Copo vazio, de Natalia Timerman. O romance retrata Mirela, que se esforça pesado — ora aos pedaços, caindo no ridículo, ora demonstrando força e amor verdadeiros — para administrar, ou pelo menos entender, o sumiço de Pedro, com quem vinha se relacionando numa boa. Um dos pontos cruciais da trama (não porque nos interessa mais, juro), Mirela recorre a Mauro, um homem que lê os búzios e as cartas. Durante a sessão, ela descobre detalhes do seu futuro e a fecha perguntando: “O Pedro vai voltar?” 

    

Se essa é a pergunta clássica de relacionamentos que todo mundo um dia pode vir a fazer a um oráculo, tomo espaço para defendê-la. Já fui ferrenho ao declarar sua validade em um evento presencial de Tarot e a defenderei sempre. É que por parte de alguns oraculistas, essa questão é pequena, tida como curiosidade barata, um sub-aproveitamento da ferramenta e até motivo de chacota entre soberbos, cruéis e fracos em seu ofício (conheço alguns). Toda pergunta que uma pessoa apaixonada (leia-se perdida e por vezes machucada) traz às cartas pode e deve ser considerada e acalentada com respeito. E se justo essa questão — “a pessoa vai voltar pra mim?” — é tão velha quanto o próprio Oráculo de Delfos, quem são esses frios na fila do pão para rechaçá-la? 






O caso é tão sério que a respondi, devidamente, depois de muita pesquisa de campo e revisão técnica, no Tarot Direto, lá no Personare. Se você precisa saber se alguém vai voltar, independentemente do contexto, clique aqui.




CONCLUSÕES?


O que fazer quando se toma um ghosting? Como entender quem não se desliga claramente? Como aceitar um abandono, visto que havia uma ligação real ali, independente de compromisso e até mesmo de monogamia? Existem diretrizes. Uma delas é devolvê-lo na mesmíssima intensidade. Tão intenso quanto foi o vínculo, o sexo, o sonho. Silenciar tudo, ou seja, fechar-se em Papisa (patrona das Copas); sair andando e sumir, isto é, dar um Oito de Copas bem dado. Pagar na mesma moeda, mesmo que faça pouca ou nenhuma diferença à pessoa-fantasma. Arrastar-se e humilhar-se fica fora de cogitação, até porque a pessoa aflita já pode ter feito isso de alguma ou de várias maneiras. Claro que a vida é esse teatro romano a céu aberto, às vezes com vulcão em erupção bem próximo ou na própria cena, “mas como posso me deixar chegar a esse ponto de sofrimento?!”, diz um dos meus consulentes. Então, por via das tantas dúvidas, não fazer nada é uma saída. Pedir explicações, exigir posicionamento e descer o nível em nome de resoluções pouco adiantaria — estamos diante de quem não está diante de nós. Ainda que esteja, com sua presença sutil, velada, instagrâmica. Maria Homem, uma das psicanalistas do momento, traz as questões mais importantes a serem feitas:




Maria Homem - frame do video 'Ghosting'
Assista clicando aqui


Enquanto se reflete sobre esse tiro (no meio do peito), não fazer nada, em termos de Tarot, seria outro aconselhamento digno. Acredite. É fazer muita coisa. Eu diria e já cheguei a dizer, em consultório: continue vivendo sua vida, ainda que contando com a presença desse fantasma (porque sei que você conta). Por mais que doa, que sangre e quase te mate. Siga. Distraia-se. Continue como se ele não existisse de fato. Tomemos a frase 'fantasmas não existem', tal como aprendemos para domar o medo do desconhecido, do que nos foge ao domínio das mãos e à nossa compreensão. 


Porque uma das artimanhas do ghosting é justo a constante eternização dessa pessoa ausente no outro, como reflete Mirela, a certa altura, em Copo vazio: "Talvez Pedro seja um lugar seguro, até dele mesmo, uma chave para entrar no terreno do que sempre nunca será; um aceno, direto de um instante, ao tempo que não transcorreu, acessível em lembrança nos finais de tarde da vida toda". 




A canção The Quiet (2015), de Troye Sivan, retrata bem um ghosting
Clique aqui para ouvir



Ainda assim, saibamos que, nas montanhas do desejo e do amor, o término indigno de uma relação, baseado no silêncio e no afastamento deliberados, não são respostas nem posturas; ele são uma espécie de crime, alguns até com requintes de tortura. E são, sobretudo, um dos picos mais altos da irresponsabilidade afetiva.




O Oito de Copas enquanto percurso do abandono e O Eremita enquanto lobo "solitário" 
vendo e acompanhando de longe (ou do alto), com algum conforto, a pessoa que deixou para trás


Porque existem vários motivos para o ghosting, claro, dos mais inofensivos e justificáveis aos mais absurdos e cruéis mesmo: do medo paralisante à plena indiferença. Não nos enganemos: há pessoas que forçam todas as barras possíveis ou exageram no grau de envolvimento e não deixam outra escolha à presa a não ser fugir, cortar todos os canais de contato. Há quem prefira passar por insensível a ter que arcar com a dependência emocional do outro. Entende-se.


Tanto que o restante das três leituras se mostrou diferente, naturalmente, e pude esmiuçar melhor cada caso. Mas parece unânime que a pessoa que some é um poço de solidão. Ela lida assim com as pessoas porque é o lugar comum dela: estou só e sou só. Não se permite uma conversa ou mesmo um entrave de forma adulta, saudável. Ela pode ser a pessoa mais linda e promissora do mundo (pode mesmo, acredite), mas não sabe ou não quer administrar seus próprios sentimentos, seu grau de comprometimento consigo e com o outro.     


Mesmo que fosse para dizer “não podemos mais nos ver, eu não quero, me desculpe mesmo”. Não age. Sendo assim, nenhum ghost merece qualquer tortura por parte de quem ele lesa com silêncio e distanciamento, porque ele é, sim, plenamente irresponsável por si. Talvez valha o mais terrível dos memes:






Porque há casos em que vale mesmo o clichê: quem quer vai atrás. Mas isso não desculpa, de forma alguma, o comportamento de quem prefere se ausentar da vida de alguém com quem já se tem um convívio considerável ou com quem alimenta um vínculo intenso e propício. Ainda mais sem aviso prévio. Em vez de se apiedar e querer salvá-la como se fosse você a pessoa certa para ela, pare e reconheça: cada um tem seu tempo — até mesmo os destruídos. Os imaturos. E os medíocres. Mas dói. É difícil. Anne Carson, em sua obra-prima Eros, o doce-amargo (Bazar do Tempo, 2022), é cirúrgica: "quem deseja o que não foi embora? Ninguém. Os gregos deixaram isso bem claro".


"Bom, e no final das suas três leituras" — você pode me perguntar — "as três pessoas voltaram, de acordo com as previsões?" Esses detalhes eu deixo para a sua imaginação. 



Nos vemos em breve. Ou não.












PS: SE VOCÊ ESTIVER SOFRENDO 


Eu entendo, respeito e te digo para confiar no seu destino. Você provavelmente fez tudo o que pôde, foi nos mais baixos recessos em nome do desejo, do amor ou pelo menos da compreensão, do jogo limpo que pode e deve haver entre duas pessoas adultas. E só por isso a sua consciência deve se manter leve e limpa. Está pago. Você não se eximiu do que sente, e isso é ouro. O seu ouro. Se a pessoa se foi, evite julgá-la. Foi e pode voltar, mas não espere por isso. Não mais. A esperança não é boa amiga. Escolhas e atitudes sensatas são sua escolta. O coração puro, e batendo, vale mais que qualquer humilhação. Você não precisa disso. Eu sei que todos os planos pareciam perfeitos, mas você ainda nem imagina o que lhe espera. E olha que não sou nada conformista nem otimista deslumbrado. Honre esse coração. Caminhe. E fique com essa minha frase, que de inocente não tem nada: confie no seu destino. Mesmo.