Palazzo Grimani Veneza, 2021 |
Palazzo Grimani Veneza, 2021 |
Pensando nos tantos séculos reluzindo no escuro, em perfeito estado, lembrei de Borges citando Santo Agostinho, talvez n'O Livro de seres imaginários, sobre corpos que podem ser perpétuos no fogo. Me faço imaginar o estudo de alguns documentos antigos das alas leste e norte, plantas e cartas e gravuras bem conservadas na Biblioteca Marciana que alegassem a presença remota de afrescos ou incisões, e arquitetos atentos ao que não se vê senão o branco gelado de um pavilhão nada medieval, perscrutando o que (ou quem) descansaria (ou não) rente aos tijolos impassíveis. Melhor: avento o susto dos museólogos e dos guias descansados com a sensação térmica alterada na muralha ao sul, o perigo de ferver os jardins suspensos de Camillo Mantovano, abrasar os mármores claros da Sala do Doge ou mesmo ameaçar a abóbada de Ganimedes, suspenso com Zeus feito águia em seu silêncio.
ATALANTA FUGIENS Michael Maier & Matthäus Merian 1617 |
Risco de incêndio há sempre, e qualquer fagulha no santuário do Mar Tirreno é ofensa e piada a essas estruturas de milênios, com seus tecidos e troncos e vidros sustentando a maior maravilha do mundo. Ainda assim se evita, e lá se vão as tantas análises, os termômetros gritantes e seus motivos desconhecidos. Só uma alternativa drástica abrandaria a tal quentura: quebrar a parede, passar tudo à prefeitura como exigência da restauração e ver, por entre marretas e sujeira histórica, quais seriam as razões do mistério, porque elas existem. E persistem, como se vê.
Palazzo Grimani Veneza, 2021 |
Faz calor em Veneza, e agora se vê um motivo. O fogo, certa vez ocultado, insiste em queimar. Faz sua hora. E esse é um exemplo. Intacto. Agora eu respondo: é sobre as gôndolas, os sinos, os barcos, as águas. Mas é sobre essa cidade, que liberta salamandras e revela mais dela mesma — e mais de mim, por sagrada consequência. E é, sobretudo, pelo fogo. Que não e nunca se apaga.
Leonardo Chioda
ÁS DE PAUS The Alchemical Tarot Robert M. Place |