A fome é que é obscena.
José Saramago
Eu nunca me demorei no Cinco de Ouros. Nos idos de 2000, quando comecei meus estudos oraculares, este era o arcano em que pensava compreender o suficiente essa cena absoluta de penúria — a maior, a mais triste e dura fonte de pobreza de todo o Tarot. Ledo engano meu. E sempre soube desse engano, atraído pela imagem criada por Pamela Colman Smith a pedido de A. E. Waite, que prenuncia “problemas materiais, acima de tudo”. Uma imagem que merecia — e sempre merece — um estudo debruçado.
O Cinco de Ouros não só enquadra a arquitetura da miséria, com suas diversas particularidades e suas devidas profundezas, como ensina a ver a realidade com a devida atenção e a necessária postura firme diante dessa verdadeira obscenidade. Cinco (mil gatilhos) de Ouros.
Impossível não pensar, ao menos por cinco minutos, em Pamela Colman Smith erigindo o muro escuro de uma catedral como uma crítica à Igreja em relação aos mais necessitados. Se me volto ao Sola Busca, até aceito que Smith possa ter se baseado no Cinque di Denari deste que é um dos maços de Tarot mais enigmáticos e importantes da História para compor o seu Five of Pentacles.
E se falo em catedral, penso em Fulcanelli. O lendário alquimista francês afirma que “a catedral é o refúgio hospitaleiro de todos os infortúnios”, onde os doentes imploravam a Deus o alívio dos seus sofrimentos, permanecendo nela até sua completa cura. Isso ocorria em Notre-Dame de Paris em que aflitos, convalescentes e debilitados eram recebidos por médicos na entrada da basílica, ao lado da pia de água benta, e várias noites. É, portanto, “o asilo inviolável das pessoas perseguidas e o sepulcro dos mortos ilustres", servindo a todos, sem olhar a quem. Além do paredão gelado de uma catedral, este pode ser o muro qualquer outro templo. Então penso em José Santa-Bárbara, um dos maiores leitores de Saramago e grande ilustrador d’O Memorial do Convento. E daqui em diante também posso ver, no Cinco de Ouros, Baltasar e Blimunda bem rentes ao santuário de Mafra.
Sete-Sóis e Sete-Luas
José Santa-Bárbara, 2001
Os dois retirantes concebidos por Smith têm iconografia própria. Pouco importa, nesta altura da humanidade, a fonte exata em que ela bebeu para compor uma das cartas mais difíceis do Tarot. Dois mendigos são emblemáticos na história das artes gráficas, infelizmente. Na carta de Smith não vemos a entrada, apenas a ostentação colorida de um vitral que remete à farta saúde de uma instituição religiosa milenar.
Dois andarilhos, pessoas visivelmente debilitadas, seguem seus destinos pela neve. Deram de cara com as portas fechadas, sumariamente impedidos de se abrigar no templo? Ou estariam quase chegando à entrada, alimentando esperanças a passos dolorosos, de serem recebidos na Casa de Deus? Seja como for, o drama estático — a cena pausada que a carta mostra — é que prevalece na teoria e na interpretação. O Cinco de Ouros abarca as mazelas do caminho sem floreios.
Não há flores na rua da amargura. Não há perdão para quem se esforça na glamourização da pobreza com a tal da 'resiliência', palavra da moda dentre os mais ingênuos da onda holística e do coaching. É esperado que quem enfrenta o frio cortante da miséria se torne mais forte e resistente aos percalços, mas nunca é garantido. A vida adoece. O frio mata. E o Cinco de Ouros continua sendo um quilômetro infrutífero de uma terra vasta de oportunidades. A pé. Sem choro nem piedade.
Uma das profundezas dessa carta se revela a partir da clara noção de que não temos noção clara a respeito do gênero dos dois caminhantes. Podem ser dois homens ou, como tem se mostrado frequente na maioria dos baralhos derivados do imaginário Smith-Waite, um casal heterossexual: a mulher, mais alta, e o homem, mais debilitado, valendo-se das muletas e ostentando o sino, sinal de que os leprosos, distanciados por todos, se aproximam do vilarejo.
Gravura de Adriaen Matham & Adriaen van de Venne (1630-1650).
Acervo do British Museum
Com este instrumento, tão discreto que passa silencioso pelos cartomantes desatentos, se vê que a Igreja torce o seu nariz de ouro para ajudar a quem realmente precisa. Ainda assim, Chevalier e Gheerbrant alegam, em seu utilíssimo Dicionário de Símbolos, que “o sino evoca a posição de tudo o que está suspenso entre o Céu e a terra, e, por isso mesmo, estabelece uma comunicação entre os dois. Mas também tem o poder de entrar em relação com o mundo subterrâneo”. O subterrâneo liga-se ao que está longe das vistas embora bem embaixo do nariz da sociedade: o dito submundo dos viadutos, as ruas fechadas pelas drogas, os doentes terrenos descampados e os becos dos viciados em que virtude alguma parece ter vez.
Com essa deixa vamos nos aprofundando na paisagem impossível do Cinco de Ouros, que fala claramente a língua dos homens e clama pelo socorro dos anjos. Outra interpretação, também com frequência trazida ao Tarot, é a de que se trata de uma mãe com seu filho. A partir do baralho de Bill Greer e Lloyd Morgan, uma das imagens católicas mais poderosas é aventada neste arcano:
Five of Pentacles - Morgan-Greer Tarot (U.S. Games, 1979)
La Pietà - Michelangelo (Vaticano, 1499)
Só quem vive numa bolha nunca viu uma mãe pedindo esmola com um filho a tiracolo. E só quem vive mesmo numa bolha, bem turva de tanto positivismo tóxico, não vê que este arcano dá voz aos fracos e oprimidos, aos abandonados e apagados pela sociedade. A nevasca torna invisível que passa. Nos baralhos em que o Cinco de Ouros centraliza a mater dolorosa, o protagonista deixa de ser o infortúnio na nevasca para se tornar o calor espiritual, que reconforta aqueles que sofrem dificuldades físicas e financeiras. Não à toa, o triângulo de Michelangelo se repete com os vitrais — mãe, filho e Espírito Santo, que roga por nós.
O vitral da imagem Smith-Waite é um enigma que causaria grande apetite nos decodificadores de imagens se não fosse tão óbvia em seus segredos. Trata-se de uma árvore florida, frondosa e forte o bastante para representar o espírito sobre a matéria: quatro tentáculos abaixo — demarcando as firmes estruturas materiais, morais e sociais — e um acima, o espírito, ostentado como se fosse Deus acima de todos. Balela eclesiástica, argumento plausível para a santa mamata dos vendilhões que gozam do lado de dentro dessa janela tão próspera.
Em outras versões, como a de Frieda Harris, considera-se o pentáculo invertido sempre como uma “um símbolo de alguma tendência sinistra”, segundo o próprio Crowley — “o triunfo da Matéria sobre o Espírito”, que gera séria instabilidade nas fundações de tudo o que é palpável. O mesmo ocorre com o Cinco de Espadas com as suásticas, devido aos ataques nazistas a Londres em novembro de 1939, mesmo período em que Lady Harris concluía, numa capital literalmente assombrada pela guerra, os Arcanos Menores. Coincidência ou não, os bombardeios de Hitler também tonificam a desgraça anunciada do Cinco de Ouros: nas palavras do próprio Crowley, “seu efeito é aquele de um terremoto”, com os mesmos estragos possíveis.
Harris-Crowley Thoth Tarot
Five of Swords — Five of Disks
AGMuller, 1986
Não entremos no mérito de muitas discussões a respeito do cinco, o profano número sagrado que sempre extrapola os espaços possíveis. Basta dizer que a vida é o sopro passando pelos dedos de uma só mão: 1. concepção, 2. nascimento, 3. crescimento, 4. maturidade e 5. morte. Nem falemos "amém" a Crowley, porque é preciso fazer justiça às suas úteis interpretações e aplicações invertidas. Mesmo tanto e tão associado a práticas de magia negra, na religião Wicca, por exemplo, o pentagrama com a ponta superior posicionada para baixo é um símbolo do Segundo Grau (o último e o mais alto é o Terceiro), assegurando que o iniciado segue em processo de desenvolvimento. Cinco é o número do espírito e da matéria combinados no corpo e no universo — vide o Homem Vitruviano de da Vinci —, mas nos Arcanos Menores ele também rege os conflitos naturais da própria interação entre as forças e as formas. Em Paus, Copas, Espadas e aqui, o Cinco é número e arcano de transformações reais e radicais. E continuamos bem longe de qualquer sensacionalismo satanista e suas teorias hediondas. Demoníaca é a miséria, a desigualdade e a política do abandono.
Há teóricos que preconizam o Cinco de Ouros como o ponto crítico de um relacionamento afetivo, como se um período de provação chegasse aos compromissados. Não à toa, os atributos mais frequentes em diversos manuais franceses e italianos prenunciam o surgimento de uma ou um amante, abalando as estruturas de um casamento — nada mais catastrófico para a moral e os bons costumes, já que “não separa o homem o que Deus uniu”. Mas se pensarmos em sombras e luzes, a contraparte tão luminosa estaria em outro naipe, bem no arcano das alianças firmadas e do brinde tão celebrado: o Dois de Copas seria o mar de rosas e o Cinco de Ouros o seu contrário. Acaba sendo obrigatória, de tão óbvia, a associação dessa dupla com os versos mais célebres do Rito do Matrimônio católico, proferidos no instante da União das Mãos e do Consentimento: "prometo estar contigo na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, amando-te, respeitando-te e sendo-te fiel em todos os dias de minha vida, até que a morte nos separe."
Na alegria e na tristeza
Na saúde e na doença
Na riqueza e na pobreza
Não sendo (nunca) homogênea a massa de significados para esta carta em toda a literatura tarológica, aumenta a sua brecha interpretativa. De amor e amantes em Etteilla e em Papus a perdas e dificuldades, nos dias de hoje, o Cinco de Ouros culmina em um arcano transitório em relação ao desamparo e ao desespero. Como se não houvesse, de acordo com o provérbio português, mal que dure para sempre. Talvez eu fique com a frase bíblica que Sofia di Vincenzo, em seu livro sobre o Sola Busca, aplica ao nosso arcano: “post tenebre espero lucem”. Quem, vendo e vivendo a treva, não espera a luz? Eu espero calor a esses dois em dificuldade escancarada, no sentido térmico e humano. Porque o Cinco de Ouros é uma carta difícil, pesada. Como bem é o inverno numa cidade de pedra.
São Paulo, julho de 2021. A temperatura chega a menos de 5ºC. Várias igrejas passam a alojar, nessas noites de frio que mata, diversos moradores de rua. Grande exemplo é o incansável padre Júlio Lancelotti, à frente da comissão de acolhimento aos desabrigados, que já deixou de ser um simples pároco da Mooca para se tornar um dos mais influentes religiosos do país nas redes sociais. Seu ofício cativa os que se importam e choca demagogos, hipócritas e falsos cristãos. Mas o que realmente deveria chocar — e infelizmente não choca, dado o Brasil de hoje — são os comentários em suas postagens: “aquele cara de jaqueta e essa mulher de cabelo tingido?! Isso não é gente de rua nem aqui nem na China!”, como se as pessoas em situação de rua tivesse a obrigação de serem irreconhecíveis enquanto seres humanos, como bem manda o imaginário de certas ditas pessoas de bem.
Instagram: @padrejulio.lancellotti |
Não. O próprio Tarot ilustrado por Pamela Colman Smith assegura esta verdade, com seus rostos aleatórios que podem, certamente, ser os rostos de quaisquer outros personagens dos outros arcanos. Eu vejo as feições da mendiga na madame do Nove de Ouros e nas águas claras da Rainha de Copas. Eu vejo o mendigo de muletas na firmeza do Nove de Paus e, sobretudo, no rosto soberano do Rei de Espadas. Sendo assim, fica o óbvio: quem está agora no Cinco de Ouros pode ter estado e poderá estar em qualquer outra posição de qualquer outro arcano. Quem julga pessoas — eu disse “pessoas” — em situações deploráveis não ajuda em nada. Eu disse “nada”. Quem critica aqueles que ajudam de verdade perpetua as mazelas. As próprias e as dos outros.
O Cinco de Ouros tem sido um arcano invisível. Ele revela a nossa vulnerabilidade enquanto seres humanos, falhos e propensos a toda sorte de quedas. Pouco se fala dele a não ser em releituras que se distanciam de toda a tradição simbólica. Há mil casos e exemplos. Tal como são muitas pessoas em situação de extrema pobreza; tal e qual a pessoa que perde tudo e tem questionados os seus valores. Eu nunca havia me debruçado sobre o Cinco de Ouros e o motivo, agora vejo, é porque sempre considerei inadmissível normalizar pessoas em miséria extrema, em perpétuo risco de morte, em sofrimento por questões de primeira, segunda e terceira necessidades. É comum fechar os olhos a essas questões, mas não é humano perpetuá-las. O Cinco de Ouros é retrato (obsceno) universal do descaso, do nojo e da omissão dos grandes.
E continua em mente a cena arquitetada pela genial Pamela C. Smith. Ela é a base da adversidade, atributo já clássico deste arcano. O Cinco de Ouros não só contrasta a riqueza do templo com a pobreza de fora como escancara a imponência do que se cria — o templo — com a insignificância de quem criou — os dois andantes excluídos, os dois obreiros mal remunerados pelo Estado? —, mostrando que é mais fácil perceber o que podemos fazer do que quem podemos nos tornar. Glória da indiferença. Essa perspectiva, na atual conjuntura, dá margem a uma possibilidade necessária: essa que tida como uma das piores carta do Tarot, é uma carta de resistência. Ela ensina a dizer com mais frequência uma das palavras que preferidas de Saramago: “não”, convencido de que é preciso dizê-la mais e mais, “mesmo que seja uma voz pregando no deserto”. Ou no frio cortante.
Porque é importante dizer não ao acúmulo desenfreado de riquezas por umas poucas pessoas enquanto outras milhões passam fome, por exemplo. Porque é importante, agora vejo, depois de dois dias imerso nas analogias possíveis, notar o quanto é necessário, a quem o observa, sorteia e interpreta essa carta, não se esquecer jamais dos seus privilégios. E ajudar sempre — da forma como é possível e pelo tempo que for necessário — a diminuir a dor de animais e pessoas em condições cruéis. Esta é uma lâmina que machuca. Este é um arcano que ensina.
O Cinco de Ouros clama pela noção sincera de que há dores piores que as suas.
O Cinco de Ouros exige olhos e mãos para quem está lá fora, sem saber se haverá amanhã.
O Cinco de Ouros pede para se colocar no lugar de quem tem fome, frio e sede.
O Cinco de Ouros implora por justiça e misericórdia a quem desiste de si.
O Cinco de Ouros mede e revela a sua, a minha e a nossa humanidade.
P.S. Por mais cristão que pareça este ensaio (e mesmo não o sendo o seu autor), nada impede de abraçar a causa de um padre e de ajudar a quem precisa. Pelo contrário. Pouco interessa a religião; o que importa é ajudar. Quem critica e maldiz as atitudes de uma paróquia, uma entidade social ou um grupo beneficente alegando ideologias políticas e impondo convicções religiosas, também precisa de muita ajuda. Aliás, tem algo muito estranho e muito errado em quem lê Tarô e estuda Esoterismo, por exemplo, e não se volta a questões sempre urgentes como pessoas e animais em situação de fome, frio e maus tratos. Quem trabalha a favor da espiritualidade trabalha a favor da ajuda, da justiça e da vida. É uma missão. Assim como é interpretar os símbolos, esses seres — vivos e bem visíveis — ao nosso redor.
BREVE BIBLIOGRAFIA DE APOIO
CHANG, T. Susan & MELEEN, M. M. Tarot Deciphered. Llewellyn, 2021.
CROWLEY, Aleister. The Book of Thoth. Lancer Books, 1969.
DI VINCENZO, Sofia. Sola Busca Tarot. U.S. Games, 1998.
FARRAR, Janet & Stewart. A Bíblia das Bruxas. Alfabeto, 2017.
FULCANELLI. O Mistério das Catedrais. Edições 70, 1986.
CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. José Olympio, 2020.
LOUIS, Anthony. O Livro Completo do Tarô. Pensamento, 2020.
SARAMAGO, José. Memorial do Convento. Companhia das Letras, 2019.
WAITE, Arthur Edward. The Key to the Tarot. Rider Books, 1999.