Há alguns dias, fiz uma chamada para discutir um artigo enviado por uma leitora do Café Tarot. O tema era a questão de gênero nas cartas, tão interessante quanto polêmico. Eis o enunciado:
Você lê Tarô? Que tipo de abordagem faz das mulheres e dos homens nas cartas? Enfim um artigo que pode gerar muita discussão — e deve, porque é bom discutir. É necessário. Para que haja menos retrocessos ambulantes [cartomantes] e mais reflexões sobre questões urgentes. Todos ganham. E até o esoterismo agradece.
Me perguntaram agora o que eu quis dizer com 'retrocessos ambulantes [cartomantes]'. Em meio a tantos afazeres, pensei por um momento se deveria discorrer sobre a construção de um enunciado em que questiono especificamente profissionais de caráter rígido ou ultrapassado afiliados à Cartomancia, seja ela clássica, moderna ou contemporânea. O tópico me pareceu instigante e pertinente, então escrevi rapidamente algumas considerações.
Existe um artifício linguístico, empregado especialmente na Arte Poética, chamado "rima". Quem tiver dicionário em casa — todos, presumo, principalmente os que se dão à leitura de imagens — sugiro consultar não só 'rima' mas também outros termos ligados à construção textual, às figuras de linguagem, às intervenções publicitárias como 'adjetivo'. Talvez eu não precise explicar que uma adjetivação foi empregada com o termo 'cartomantes', mesmo sabendo da flexão 'cartomânticos', da qual não gosto e que soaria estranha se tivesse empregado no meu enunciado. Construir um texto se assemelha à leitura do Tarô: em ambos os casos nos valemos do processo narrativo, cada um com suas idiossincrasias. Construir um período também pressupõe algum domínio de escrita. Porém, como sempre, os perigos de qualquer construção estão no entendimento, na reação que ele causa. E aqui, 'retrocessos ambulantes [cartomantes]', com este jogo de palavras rimadas, para algumas pessoas parece ter soado como menosprezo tanto pelo termo 'cartomante' quanto pela classe de cartomantes. Não e não.
Comecemos pelo retrocesso. Usei 'retrocessos ambulantes' do referido enunciado, em rima rápida com 'cartomantes' para me referir às personalidades cujas verdades inabaláveis provém de suas religiões, de suas posições políticas [geralmente fascistas] ou até de seus sistemas esotéricos rígidos e absurdos — aqueles que influenciam seus consulentes e mesmo seus alunos a seguirem uma cartilha específica de credos, de medos e de idiotices. 'Retrocesso', no grande Dicionário Larousse [Nova Cultural, 1999], é o 'ato de ou efeito de retroceder; o retorno à posição ou ao estado anterior; reversão, recuo. O termo vem do latim 'retrocessus' que, no Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (Lexicon, 2010), se dá como 'movimento para trás'. É bom, inclusive, que o cartomante tenha mais de um dicionário. Mais de dois. Em casa e na vida: dicionário de símbolos, dicionário de termos filosóficos, dicionário analógico, dicionários de tudo. A partir daí, a visão de mundo [e de texto] se amplia consideravelmente. Sim, reconheço que numa primeira leitura os 'retrocessos ambulantes', rimados com 'cartomantes' entre colchetes, parece especificar os cartomantes como retrocessos. Muitos são, que seja dita a verdade, mas a compreensão da minha construção vai paralela ao aproveitamento de uma leitura que fazemos das cartas: o consulente a compreende como bem quer ou consegue. Logo, o leitor da minha chamada compreende como quer ou como pode. Por mais que se esforce em uma interpretação simbólica — que é, ressalto, uma construção tão elaborada quanto a textual — o aproveitamento será de inteira responsabilidade dos clientes consulentes [outra rima!]. Sendo assim, o sentido de um simples enunciado pode ser deturpado por quem não conhece determinados mecanismos textuais ou por quem não se esforça em tentar desdobrar a interpretação do que se lê, coisa tão recorrente numa consulta às cartas. Ah, e o inegável: a discussão proposta sobre o artigo foi longe, como bem quisemos. Sem qualquer interpretação ofendida [pelo menos não declarada] dos tais 'cartomantes retrocessos'. Ressalto, então, que a chamada para o artigo foi construída sem qualquer conotação negativa direcionada a uma classe na qual me incluo com absoluto orgulho — eu, Leonardo Chioda, cartomante e escritor.
Quem se diz 'tarólogo', 'tarotista', 'leitor de sorte' ou mesmo 'fortune-teller', sabe-se cartomante. É um fato, não é uma escolha. É a nossa natureza. Profissão aprendida — ou condição herdada, de acordo com alguns. Mas quem deturpa um enunciado sem entendê-lo de verdade, julgando a partir de uma primeira leitura sem considerar a ironia ou os jogos de palavras empregados, pode ser um exemplo de retrocesso. A quem não conhece nada de comunicação poética, achando que se trata apenas da parte bela e inútil das bibliotecas e dos cursos de Letras, creio que seja auspicioso saber que o Tarô floresce na literatura italiana com destaque em passagens fabulosas de Petrarca e de outros poetas de tamanho indiscutível. As cartas são linguagem. Quem se dói por uma construção desse tipo, de rima proposital, deveria rever ou aprender alguns conceitos. Que vá ler Décio Pignatari, Alberto Manguel, talvez Borges e também Barthes para aprender algo sobre fruição e o que é erigir um texto, por menor que ele seja. Aposto, também, que as leituras oraculares serão tonificadas consideravelmente. Porque ser cartomante é, entre tantos verbetes, estruturar o intelecto, compreender as emoções e desenvolver a intuição. Cartomante, filho de Fortuna. Cartomante [estudante]. Duvido que o leitor de cartas exista para alimentar qualquer ignorância, ainda mais a respeito de leitura. Embora exista, tranquilamente, o cartomante petulante, se debatendo no inferno da própria rima.
Aliás, existe palavra mais linda, neste nosso recorte léxico, que 'cartomante'? E existe palavra mais temida entre tarólogos? É bom que digamos a verdade. Mesmo havendo frequentes avanços na história do Tarô brasileiro, com esforços consideráveis de desmistificação da profissão e da prática da Cartomancia, ainda ressoa o mistério, o fascínio, o encantamento da personagem de Machado de Assis. E há ainda, infelizmente, o preconceito entre os próprios cartomantes que tentam fugir do termo devido à associação com pessoas que valem de processos intuitivos ou religiosos para ver o futuro, aquelas que 'olham as cartas' e aquelas de profissionalismo duvidoso com seus feitiços, amarrações e o slogan 'não diga nada que revelo tudo'. Para refutar qualquer ranço, valorizemos o termo pela via da etimologia: o sufixo ‘mante’, que nos veio pelo grego ‘mantike’ e ‘manteía’, estão ambos relacionados à tecnologia ['techné'] da profecia, à adivinhação e ao oráculo, segundo Junito Brandão no Dicionário Mítico-Etimológico [Vozes, 1992]. Cartomante, independente das roupagens e dos mal entendidos, é um mecânico do acaso. Um adjetivo e tanto.
Talvez coubesse aqui me desculpar pela interpretação equivocada por parte de quem não se debruça devidamente sobre o que lê. Ou dar de ombros, porque escrever é muito mais do que uma conversa — é uma engenharia que se aprende com tempo, humildade, revisão e leitura. Dedicação verdadeira, sobretudo. Assim como a Cartomancia e o seu funcionamento. Então prefiro os ombros, que já suportam bastante, a ter que me responsabilizar pelo nível de leitura aparentemente raso de alguns. Que fique o registro sobre um termo pouco usado mas muito amado por mim — que aplico com toda a licença [poética, com certeza], sempre honrando minha profissão e minha condição de cartomante. Que fique livre esta palavra, minha e sua, repleta de signos tão antigos quanto o ato de 'intuir à maneira dos deuses'. Contra os retrocessos.
Porque cartomantes somos todos, Atlas da combinatória, dicionários vivos.
Ambulantes. [Cartomantes].
E as rimas ficam.