31 de outubro de 2015

NOVE DE ESPADAS: O SEU PIOR PESADELO


NOVESPADAS • Leonardo Chioda
Colagem virtual a partir da imagem
'Königin der Schwerter, de Margarete Petersen 

Margarete Petersen Tarot • Königs Furt, 2002.


Mr. Sandman, bring me a dream 
Make him the cutest that I've ever seen 
Give him two lips like roses and clover
Then tell him that his lonesome nights are over.

Sandman, I'm so alone
Don't have nobody to call my own
Please turn on your magic beam
Mr. Sandman, bring me a dream.

The Chordettes, 1953.


Keri Tate é a diretora de um colégio particular em Summer Glen, bem afastado do agito californiano. De noite, ela sonha com seu gabinete. Sobre a mesa, um porta-retrato de seu filho John. Meia-noite em ponto no relógio: 31 de outubro. A câmera se aproxima do armário no outro extremo da sala. Ali, Keri vê uma garota desesperada tentando se esconder de um homem vestido de preto. Ele não fala. Seu único som é o da respiração por trás da máscara pálida e inexpressiva. Em sua mão esquerda, uma enorme faca de cozinha. Destruindo a porta de madeira do armário, a luz de fora revela o pavor da garota e o monstro dos olhos profundos tentando, alcançá-la com a lâmina. Seu nome é Laurie Strode, uma garota que trabalha de babá nas noites frias de outono. Uma faca aparece cravada no porta-retrato. Keri grita, forte e alto como faz há vinte anos, desde que a criatura silenciosa de rosto branco e olhos negros tentou matá-la pela primeira vez. Keri é a própria Laurie Strode, que forjou a própria morte e mudou de nome por medo de ser encontrada pela sombra, que não morre. Por saber que essa sombra é seu irmão, Michael Myers. 



Keri Tate/Laurie Strode (Jamie Lee Curtis) confronta seu pesadelo depois de 20 anos. 

Essa é uma das cenas iniciais do filme Halloween H20: Vinte Anos Depois, lançado em 1998 para comemorar o vigésimo aniversário do Halloween original, filme de John Carpenter. Jamie Lee Curtis retoma a personagem que lhe rendeu a fama [inclusive de Rainha do Grito] e possibilitou a longa franquia estrelada por um dos serial killers mais assustadores do cinema. Laurie (agora Keri Tate) demora a despertar do sonho tão real que a leva ao encontro do seu irmão assassino. Aquele dos olhos do mal. É essa a atmosfera aterradora do passado e do porvir que o Nove de Espadas simboliza.

De longe o Arcano Menor mais temido de todo e qualquer Tarô [mais ainda que o Dez de Espadas, convenhamos], a cena concebida por Pamela Colman Smith é um convite a uma análise simbólica aprofundada, mesmo sendo frequentemente mal interpretada, como várias outras deste tão nefasto naipe. Não pela literatura esotérica séria, que até tem frequentado os conceitos tradicionais com relativa organização e respeito nos últimos anos, mas pelo achismo e até mesmo pelo medo que a imagem proporciona ao observador desatento. É comum detestar uma das imagens mais tristes do baralho, mas seu confronto é inevitável, cedo ou tarde. Até porque o Tarot pressupõe o contato visceral do leitor com seu objeto de leitura, que é a imagem. Definir limita, mas sugerir, com o devido cuidado, amplia as possibilidades de análise de todo e qualquer Arcano. Ainda mais quando se trata de Espadas. De nove espadas.


NOVE DE ESPADAS concebido por Pamela Colman Smith
Rider-Waite Tarot, U.S. Games, 1971.

Uma carta mal lida é como um sonho mal interpretado. Mensagens importantes podem passar despercebidas. Pensei nisso quando me deparei com o Arcano à espreita sobre a mesa. Sabe-se que nas artes plásticas a aproximação de elementos inesperados não é necessariamente satisfatória ou perturbadora, mas o incômodo desse cenário, em praticamente todos os Tarôs, é indiscutível. O exame atento da concepção artística de Smith causa dor aos olhos. Além das grades arranjadas pelas nove armas na parede escura e de uma espécie de écfrase na cena mitológica do estrado da cama — que sugere luta e derrota possivelmente injusta e cruel —, o que chama atenção é a colcha de retalhos, bem mais sugestiva do que aparenta. Em meio aos signos astrológicos bordados, indicando que os sintomas da carta são inerentes aos mortais de todos os signos [logo, a todos os mortais], flores vermelhas como sangue alegram o enxoval do quarto assombrado. Numa leitura feita de relance, qualquer um diria que são rosas, regentes milenares da paixão. Mas, com todo o respeito às opiniões divergentes em várias publicações, não temos rosas no Nove de Espadas do baralho Waite-SmithTemos papoulas.

Dorothy Gale vive em uma fazenda no Kansas com seus velhos tios e o cãozinho Totó. Sua ida a Oz ocorre quando a garotinha cai desacordada devido a um tornado que devasta a propriedade. Na terra mágica ela conhece grandes amigos como o Espantalho, o Homem de Lata e o Leão Covarde, logo companheiros de viagem até Cidade de Esmeralda. E é a Bruxa Má do Oeste que tenta impedir Dorothy e seus amigos de chegarem até lá para falarem com o grande Mágico. Um de seus perversos artifícios é o lindo campo de papoulas que encobre a Estrada de Tijolos Amarelos. Eis o plano maléfico: fazer com que a fragrância das flores encarnadas envolva Dorothy num sono eterno. Simples coincidência com o patchwork de símbolos de Waite/Smith? 


A colcha do Nove de Espadas e o (Mundo) MÁGICO DE OZ, clássico de 1938. Dorothy (Judy Garland) dormindo para todo o sempre no Campo de Papoulas Mortíferas. E a ilustração de W. W. Denslow, de 1902.

Oneiros em technicolor. Papoulas são muito mais auspiciosas do que aparentam. Não só obscuras por estarem ligadas ao ópio e à morfina, mas lendárias porque suas raízes mágicas se perdem no tempo. Papaver Rhoeas, flores dos sonhos. Hypnos, deus grego do sono, vinha representado com uma coroa delas, assim como Thanatos e Nyx. Sono, Morte e Noite, os três pilares de Morpheus, senhor dos sonhos, também ornado de papoulas. Tão associado a ele quanto a Ceres, que aceitou uma bebida feita da planta na tentativa de  se acalmar diante do rapto de Prosérpina, sua filha. Na linguagem das flores, simboliza o orgulho adormecido. Daí um vislumbre dos significados tradicionais do Arcano: culpa, arrependimento, tentativa de redenção e até mesmo aborto  um dos poderes dessa flor de sangue é o de impedir a vida. Uma bela maldição. 

Somewhere over the Darkness. Falando em Prosérpina, Dorothy descansa no Hades. Sem entrar no mérito das estranhas teorias conspiratórias envolvendo o filme que levou Judy Garland ao estrelato [apologia à cocaína, à magia negra e a outras maldades típicas], as flores inocentes de Pamela Smith confirmam: este é o portal da escuridão. Mental, porque Espadas. Catábase.

Culpa. Receio. Arrependimento que mata. Soluços de tristeza. Tudo no silêncio afiado da madrugada. Tirar as mãos do rosto e abrir os olhos pode ser mais assustador que os monstros internos. A realidade oprime, basta que algo saia dos conformes. Só o pesadelo se mantém. Surge de todos os lados. Prevalecem, então, outros atributos tradicionais da carta maldita: autoflagelação, aprisionamento e até possessão. Todas as aberrações sobre uma cama estão regidas pelo Nove de Espadas. Haveria lugar mais propício ao sobrenatural?


NOVE DE ESPADAS do sensacional Tarot of the New Vision | LoScarabeo, 2003.
Regan (Linda Blair), ícone do terror. O EXORCISTA | Warner, 1973.

Pesadelo é uma das palavras-chave mais comuns às nove lâminas. Etimologicamente, temos a sensação de "pesado", um sonho esmagador, mesmo que o termo pesadilla, do espanhol, chegue a parecer mais leve e menos perigoso. No grego moderno tem-se efialtes, também o nome de um importante político ateniense. Significa 'pesadelo' porque os aristocratas da cidade contavam que o líder democrata aparecia constantemente em seus sonhos. O incubus  latino é o demônio que oprime aquele que dorme, inspirando o pesadelo. No alemão é Alp que remete aos elfos, seres pequeninos acomodados sobre o peito do sonhador, suscitando os terrores. Já nightmare, tão famosa e apelativa, tem suas razões: night mare, égua da noite. Mas a raíz vai mais fundo e longe, bem de encontro ao escandinavo: niht mare ou niht maere, o demônio da noite. A ideia da origem diabólica para o pesadelo é dominante, percebe-se. A didática está toda presente na famosa tela de Henry Fuseli, The Nightmare. Só faltam as nove Espadas.


The Nightmare ( 1781) , de Henry Fuseli. 
Goethe Museum, Frankfurt.

A pessoa apavorada sobre a cama acorda DE UM ou EM UM pesadelo? Aí começa o jogo possível que o Tarot [sempre] proporciona. De forma crescente no naipe, vemos a pessoa ferida mortalmente e acordando no sonho. Ou do sonho da morte. Ou, decrescendo, talvez esteja no Inferno, pois o Oito de Espadas poderia bem esboçar os requintes típicos de algum círculo dantesco. Tortura psicológica. Alguns segundos se tornam momentos intermináveis de assombro. É densa a atmosfera dos sonhos obscuros. O lodo, a bruma e o azul cinzento das lâminas. 


OITO, NOVE E DEZ DE ESPADAS, por Pamela Colman Smith.
Rider Waiter Tarot, U.S. Games, 1971.

É possível [tudo em sonhos é possível] imaginar dois Arcanos Maiores convidados para a orquestra do medo: O Diabo e A Morte regendo respectivamente o Oito e o Dez de Espadas. O primeiro atormenta e o segundo aniquila. No meio o pesadelo, propriamente. Talvez esteja n'A Torre assombrada a pessoa em lágrimas sufocadas. Aleister Crowley, em seu clássico Book of Thoth, afirma que o ferrugem ensanguentado de suas nove lâminas é regido pelo Senhor do Desespero e da Crueldade. Esta última designação vem até estampada na pintura de Frieda Harris. O batismo se repete por todos os baralhos derivados da Golden Dawn. O que poderia haver entre a Interferência (Oito) e a Ruína (Dez)? 


NOVE DE ESPADAS pintado por Frieda Harris.
Aleister Crowley's Thoth Tarot | AG Müller, 1986.

Agony of Mind. Terror. Rasgos constantes na carne sedosa dos sonhos. Veneno que goteja. Dor. Um temporal de vermes e gritos se aproximando. Mesmo sendo os pesadelos da mesmíssima matéria dos sonhos, os encostos que impedem ou assombram a visita de Hypnos são sinais de condenação. Forças ocultas frequentemente mal dignificadas. Imersão em preocupações, em arrependimentos, em confusões, em castigos. Luta improdutiva contra algo muito mais forte, como bem sugere a cena do estrado da cama. Inevitável. Quem não dorme? O mal.

Samara, uma das maldições prediletas do cinema contemporâneo. O CHAMADO, Dreamworks, 2002. 
O visitante noturno que fez sucesso no mundo todo. ATIVIDADE PARANORMAL,  Playarte, 2007.


ENTER SANDMAN 
Com um punhado de areia eu lhes mostrarei o terror. 

É com essa frase de A Terra Devastada que o poeta T. S. Elliot inspira o escritor inglês Neil Gaiman a trazer ao mundo sua obra prima: The Sandman é uma das mais geniais histórias em quadrinhos que existem. Publicada pelo selo VERTIGO da DC Comics entre 1989 e 1996, até hoje enfeitiça pessoas de todas as idades, raças, credos e humores. A publicação reconta mitos e outras histórias fantásticas tendo como protagonista Morpheus, um dos muitos nomes de Sonho (Dream) ou Sandman, aparição folclórica que joga a areia nos olhos daqueles que custam a dormir, permitindo que acessem seu reino, o Sonhar. Com seus outros seis irmãos forma a família dos Perpétuos, entidades mais antigas e poderosas que todos os deuses: Desejo, Delírio, Destruição, DestinoMorte e Desespero. Mais que entidades, são essências. Não são bons nem maus, apenas são. Bem longe de maniqueísmos. Engrenagens exercendo suas respectivas funções. 


Arte de Dave Mckean para THE SANDMAN #50: RAMADAN, [Neil Gaiman e P. Craig Russell | DC Comics, 1993],   
uma das narrativas de Morpheus mais aclamadas e premiadas. DC Comics, 1993. E '
Sandman', pintura de Mike Dringenberg.

Desespero, a outra denominação do Nove de Espadas sugerida por Crowley, é bem sugestiva. Ainda que estejamos desde o início sob os domínios de Morpheus, o de muitos nomes, vale uma visita à sua irmã. De aparência mórbida e modos taciturnos, Desespero toma a forma monstruosa de uma mulher solitária e profundamente melancólica. É a regente dos suicidas, dos arrependidos, dos aflitos. Sendo gêmea de Desejo, é a musa dos sadomasoquistas e a que inspira os psicóticos a (v)irem além. Sua voz é um bezoar de sussurros, daqueles que desencadeiam arrepios: unhas dançando lentamente pelo quadro-negro ou a ponta da faca cravada embaixo delas. O som de uma seringa perfurando um olho. Ou ainda um osso se arrebentando no concreto. Senhora de todo arrepio.


DESESPERO | Arte de Jill Thompson, Vince Locke, Danny Vozzo e Todd Kleim.
THE SANDMAN: Brief Lives. DC Comics, 1994. E 'Despair', pintura de Jill Karla Schwarz.

Seu símbolo máximo é um anel-anzol que ilustra perfeitamente a sensação de ser fisgado pelos seus domínios e entrar em choque. Acordar com o coração disparado depois de um sonho ruim. Quem nunca? Dizem que em seu reino, mantido apenas por ratos e brumas, há uma infinidade de janelas flutuando no vazio. Eles são, na verdade, diversos cenários equivalentes aos espelhos. Ao fitarmos nossas projeções, saibamos que os olhos de Desespero nos assistem enquanto rasga seu próprio corpo e se diverte com a dor. E vou um pouco além: qualquer superfície fria e pesada que reflita nossa imagem de meros mortais serve para acessar o antro de Desespero. Exatamente como nove lâminas cuidadosamente arquitetadas sobre o leito. Tilintam no escuro e desfiguram a paz. 

Hora de sonhar, meu anjo.

Freddy Krueger é nome ilustre do bestiário onírico. Rei de Pesadelos.
Cartaz tailandês do filme A Nightmare on Elm Street 3: Dream Warriors (1987).


As lâminas podem muito bem inspirar um majestoso filme de terror, já é óbvio. Roteiro digno de Tobe Hooper ou mesmo Clive Barker. Olhar pro escuro por determinado tempo é dar forma a ele. A penumbra tem grande potencial criativo, assim como as imagens de um oráculo. Busca-se sentido a tudo e sempre haverá algum. É curioso que a literatura tarológica confira ora à A Lua ora ao velho e 'bom' Nove de Espadas a epígrafe de noite escura da alma. Tudo bem, tudo bom. Mas aqui é a própria treva. A essência do breu. O pesadelo, claro, se mantém.


Tarot de Marseille, de Jodorowsky e Camoin | The VertigoTarot, de Dave Mckean
Tarot of the Sidhe, de Emily Carding  | 

O Tarot, enquanto uma pinacoteca nômade, não poderia oferecer maior desgraça. Mesmo que em determinados contextos narrativos este Arcano se mostre positivo, desejado e até necessário. Mas prevalece o medo porque ilustra com incômoda clareza a incapacidade de dar conta do próprio mundo. A câimbra num mergulho em alto mar às três da manhã.  Justamente porque o pesadelo é um processo, às vezes é difícil acordar logo de cara. E a sensação é que, quanto mais se tenta abrir os olhos, menos as pálpebras correspondem, como se houvesse alguma coisa no ambiente que não devesse ser vista de forma alguma. Mãos sobre o rosto! O clímax do Nove de Espadas. Um tributo ao macabro.

Pesadelos povoam a literatura americana de horror no melhor estilo Nove de Espadas.
toomuchhorrorfiction.blogspot.com

Falando em macabro, a arquitetura do pesadelo tal qual a contemplamos na literatura e nos filmes se deve a alguns gênios por toda a escuridão que semearam no mundo dos vivos. Hoffmann, grande nome da literatura fantástica, contribuiu com seu próprio Homem de Areia: Der Sandmann é um dos contos de horror mais significativos. H. P. Lovecraft também merece atenções, já que seu Necronomicon é tão infinito em histórias quanto o Tarô  histórias infinitamente ramificadas. Mas quem se destaca antes e depois de todos é Edgar Allan Poe, mestre absoluto dos piores sonhos. Em A Queda da Casa de Usher, o pai do conto policial recorre às artes plásticas para ilustrar as descrições de sua personagem diante dos assombros ao longo da narrativa: o já conhecido Pesadelo de Fuseli. Uma segunda tela de mesmo nome repete as alusões à lâmina. Comparações com a anterior são desnecessárias. Égua e elfo marcam presença.


The Nightmare (1802) , de Henry Fuseli. 
Museu Goethe, Frankfurt.

O expressionista Murnau inaugura a imagética vampiresca nas telas a partir de Conde Orlok, o vampiro de Nosferatu (1922), clássico do cinema mudo. Também adaptando o romance de Bram Stoker aos Arcanos em seu estranho Vampire Tarot, o tarotista e escritor Robert M. Place acaba bebendo das fontes visuais do diretor alemão para compor seu Nove de Facas. Vampiros são seres de pesadelo também. Um quarto escuro, uma cama, uma donzela indefesa. Elementos indispensáveis à composição das melhores cenas de terror. 


NINE OF KNIVES | Vampire Tarot, de Robert M. Place (2009).
Cartaz moderno do filme Nosferatu: Eine Symphonie des Grauens, de F. W. Murnau (1922).


Borges | Lisl Steiner
Talvez porque garotinhas sejam símbolos de pureza. A virgindade entre os lençóis é alvo fácil para demônios famintos que transitam entre os sonhos. E o mesmo Poe uma vez escreveu que tudo o que vemos ou parecemos não passa de um sonho dentro de um sonho. É essa a deixa para evocar Jorge Luis Borges, grande escritor argentino nas horas vagas e deus dos labirintos da linguagem em tempo integral. Ele diria que os sonhos são, em síntese, uma obra estética. Talvez a mais antiga expressão visual, já que somos o teatro, o espectador, os atores e a própria fábula. Mas o horror do pesadelo vem da fonte criativa da nossa vigília — o estado de consciência em que certas atividades sensoriais e motoras acontecem, durante o sono. Mais uma vez a imagem talhada ao pé da cama de Pamela Smith. 

Despertar no escuro
Espadas. 

Sabemos que a realidade oprime, mas o assombro produzido por maus sonhos é peculiar. Voltando à etimologia, Borges assusta ao tomar qualquer uma das traduções — incubus, efialtes ou mesmo nightmare — e deixar claro que todos sugerem o obscuro. E se os pesadelos fossem frestas do inferno? E se nos pesadelos estivéssemos literalmente no Inferno? 


E por que não? 


Um dos pesadelos de maior sucesso dos videogames para as telas.
SILENT HILL | Columbia TriStar, 2006. 

Rose da Silva percebe que algo está errado com sua filha adotiva Sharon quando o sonambulismo chega ao ápice do perigo. A garotinha sonha frequentemente com um lugar chamado Silent Hill., uma cidade esquecida pelo mundo. Decidida a encontrar respostas a tantas perguntas, Rose a leva até o local dos sonhos insistentes. Mas um acidente acontece durante o trajeto, pouco antes de chegarem ao destino. Rose acorda. 

Aonde está Sharon?  

A mãe aflita caminha à procura de sua criança por entre as ruas da cidade. Mas caminha em sonho ou em realidade? Descobrir as verdades sobre a origem da filha entre brumas, cinzas e trevas é também uma jornada pelo Arcano maldito. Ao toque da sirene    que arrepia até aquele que ri com filmes de horror , as paredes descascam como papel queimado. Arames farpados substituem as paredes e seres desfigurados em plena podridão perseguem a mulher. Uma travessia pelo vale das sombras. 


Welcome to the nightmare.




Que tal? 

Se você enfrenta seus sustos e chegou até aqui, perceba o quanto é necessário olhar para o Tarot com mais cuidado. O preconceito fere e as crenças infundadas talham a visão de mundo. Decorar significados é o mesmo que se perder nas trevas da ignorância. Os cenários do Tarot só funcionam como portas se houver coragem de chegar até elas e abri-las. Mas não sem algum preparo prévio.


DYLAN DOG, minha HQ italiana de terror preferida. 
Baralho produzido pela LoScarabeo, 2001.
ENCARE SEUS PIORES MEDOS

Esse grande clichê do universo da autoajuda tem seus méritos. Uma postura destemida vale muito diante dos pesadelos. Agarrá-los, aliás, pode ser a chave para uma nova plataforma mental. É assim que os terrores noturnos acabam sendo estímulos à manutenção coerente das ideias, dos sentimentos e das atitudes. Sonhos, enquanto símbolos, pressupõem alguma reação. Espadas são sempre convites. Dormir é preciso. E, acordar, tanto quanto. 

As delícias e as desgraças por trás do véu onírico se contraem e se expandem de acordo com o comportamento interno diante do jogo de formas e significados. De imaginação e realidade. Reinos que bifurcam os sentidos nas veredas do oráculo. Quando se trata de imagens tudo é possível, bem sabemos. Assim como nas cartas. Atenção aos espelhos.

O mesmo Borges, enxergando a eternidade, diz também que os poetas, assim como os cegos, conseguem ver no escuro. Assim deve ser o tarotista, o tarólogo, o leigo, o humano. Só uma aproximação educada e também destemida ao Tarô pode promover o verdadeiro autoconhecimento. Sustos são inevitáveis, que fique 'claro'. Olhos abertos para cultivar o campo rubro [e perfumado] de analogias sem deturpar a estrutura das imagens. Afinal, 'um sonho não interpretado é como uma carta não lida'. Ou mal lida, talvez. Essas cenas, sejam belas ou grotescas à luz das combinatórias, são sempre elas mesmas. Feitas de sangue e corpo do imaginário. Sempre suscitando o pior e o melhor de nós.


Então apague as luzes. 
E que você tenha bons sonhos. 

Mesmo.





Bibliografia CONSULTADA e INDICADA

BORGES, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
CATTABIANI, Alfredo. Florario: Miti, leggende e simboli di fiori e piante. Mondadori, 2010.
CROWLEY, Aleister. The Book of Thoth. Weiser Books, 1996.
ELLIOT, T. S. Poesia. Nova Fronteira, 1981.
GAIMAN, Neil. The Absolute Sandman Volume 3. DC Comics, 2008.
ILLES, Judika. Encyclopedia of 5000 Spells. HarperOne, 2011.
POLLACK, Rachel. Tarot Wisdom: Spiritual Teachings and Deeper Meanings. Llewellyn, 2008.



26 de julho de 2015

PRUDÊNCIA



'Prudentia', observa Cícero, vem de 'providere', que significa tanto 'prever' como 'prover'. Virtude da duração, do futuro incerto, do momento favorável (o 'kairós' dos gregos), virtude de paciência e de antecipação. Não se pode viver no instante. Não se pode chegar sempre ao prazer pelo caminho mais curto. O real impõe sua lei, seus obstáculos, seus desvios. 

A prudência é a arte de levar tudo isso em conta, é o desejo lúcido e razoável. Prudência é o que separa a razão do impulso, o herói do desmiolado. Ela determina o que é necessário escolher e o que é necessário evitar. Assim, no homem, a prudência faz as vezes do que é, nos animais, o instinto — e, dizia Cícero, do que é, nos deuses, a providência.


André Comte-Sponville
Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, 1999


The Tarot of PragueBaba Studio, 2004



24 de junho de 2015

PEDRO CAMARGO

08/04/1941 — 24/06/2015


Uma singela homenagem ao cineasta e tarólogo que nos deixa hoje. Além de dirigir a revista Ano Zero nos anos 80, Pedro escreveu o livro 'Iniciação ao Tarô', pequeno grande clássico da literatura esotérica nacional. Um amigo querido que deixa muitas lembranças e muita sabedoria compartilhada. Abaixo, um trecho significativo da obra, que merece ser lida e relida.




Uma curiosa característica do Tarô é que, no fundo, ele nos diz tudo que já sabíamos. Mas, como em geral não temos consciência de tudo o que sabemos, essas revelações têm o poder de nos assegurar a confiança e, portanto, a tranquilidade de agir de acordo com o que a vida espera de nós. Que situação pode ser mais feliz do que estar de bem com a vida?

A tendência da vida é dar certo, como a da semente é germinar. Quando achamos que as coisas não andam bem, é porque elas não estão correspondendo aos nossos projetos pessoais. Mas quem garante que nossos planos são os mais adequados?

A consulta ao Tarô, quando bem realizada, certamente vai apoiar a melhor atitude ou caminho a serem adotados em face de quaisquer circunstâncias. Esta nos parece a principal função social do Tarô: proporcionar ao consultante a possibilidade de administrar seu futuro pessoal, integrado ao desígnio supremo a ele reservado: o desígnio cósmico. Em outras palavras, saber onde se encontra o tesouro, seja nos sombrios porões após o incêndio ou nos salões iluminados da festa.


INICIAÇÃO AO TARÔ
Nova Era, 1992

22 de abril de 2015

REIS DE COPAS



Jude Law | Alfie, 2003



É com o REI DE COPAS que o Cavaleiro aprende a brandir autêntica sedução.

 O que é leal por toda a eternidade de uma noite. Senhor sempre jovem, o que faz bem feito. 
Menino que se garante — adulto aos 17, guri aos 60 — na cama e no peito. 

Artífice do Amor.

Aquele que traz as flores nos olhos.








Leonard Cohen




Um REI DE COPAS pode bem ter a voz de um deus. 


Cálido e cálice, with a burning violin. 
Não, não basta a perdição nos olhos. 

Se ele chegar cantando I'M YOUR MAN no seu ouvido, ele é seu. 
Sim. Duvide nunca.







Neil Gaiman




O REI DE COPAS é um vislumbre do perpétuo.

Canal dos mais nobres imaginários. 

Áureo. 

Água onírica governando desde as sombras.
Sabe o que ele vende? 
Sonhos.







Beatles




Cada homem é um Rei e mil outros. 

De vários-todos os naipes. 
Mas cada um tem uma gota de REI DE COPAS.


E bebem de tudo. 
Exímios na arte do chá inglês. 
Oh, believe me, darling.

Sabe o que acontece quando você os encara? 
Música.





Johnny Depp




E pra fechar em COPAS, saibamos: 
o REI vai sempre oferecer um brinde. 

Mesmo que você não aceite seus personagens. 
Mesmo que tudo ao redor desmorone. 


É a carne da elegância, o assombro de tantos talentos.
Apesar de todo e qualquer arrebatamento erótico.

Cena primordial do coração. 
E a última cartada. 
Imagem. 
Palavra.

Cheers.