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A estranheza do LARO TAROT, que me encontrou na Anatólia. |
Viajar não é só arrumar as malas e sair por aí. Não é só olhar, fotografar. Não é bancar o turista faminto a cada coisa bonita sendo vendida. Viajar é um ofício. Quando se entra num ônibus, num avião, num barco ou num livro, a condição é de leitor. E o que faz um leitor se não ler, que é contemplar palavra, imagem e sentido?
O escritor Gonçalo M. Tavares foi brilhante ao mapear o conceito de contemplação numa crônica da revista da TAP, lida a caminho de Lisboa. Contemplar é trabalhar o futuro, uma aprendizagem do que vem por aí. É preparo intelectual para os dias seguintes. Eis o que é contemplar.
Eu bato sempre nessa tecla: peregrinar é ler. Ler é viajar. Eu não consulto as cartas, eu as leio. Claro que CAFÉ TAROT não é um blog de viagem [como se houvesse algum problema se o fosse] mas o Tarô é, sim, um instrumento de caminhos. Indiscutivelmente. Me poupo de perguntas espantosas do tipo "pra quê serve essas associações entre leitura e arcanos?". Precisa-se de quilômetros de textos e paisagens para gerar associações coerentes entre as lâminas e a cultura de um povo, suas manifestações artísticas, as cidades, o café.
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Ler o sabor dos meandros de mim mesmo. |
Mas digo isso porque ainda estou chocado. E não vou me demorar em tentativas de descrever o que vivenciei. Minha odisseia mediterrânea ultrapassou os limites da beleza e da distância; atingiu certeiro meu espírito. Assistir a uma cerimônia dos dervixes, trilhar de balão os céus da Capadócia de São Jorge, flanar pelos auspícios da borra do meu próprio café e cruzar o mapa de Istambul por meio das cores e dos cheiros é mais que jornada. Foi na Turquia que percebi o quanto viajar é importante. Alimento e condenação, porque não existem fronteiras para o que chamamos de amor, simpatia, hospitalidade e honestidade. Um baralho raro me encontrou num oásis chamado Kusadasi, a poucos minutos de Ephesus, onde encontrei a grande Artemis. E onde suspirou pela última vez Maria, mãe do profeta e filho de Deus. Sinais de rotas que não estão em guias e revistas de turismo.
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Perdido no harém de seda na Capadócia. |
Contemplar, para os gregos, significa separar e dividir algo num setor e cercá-lo, circundá-lo. Contemplari. Mais interessante é associá-la à latina templum, 'que se recorta do céu e da terra'. É neste perímetro que os profetas realizam suas observações para saber o futuro. Tavares diz, então, que "contemplar é recortar uma parte do mundo, da terra e do céu, mas não uma parte do mundo qualquer - é selecionar a parte do mundo que nos pode ensinar, que nos pode dar indícios sobre o futuro. Contemplar é estar pois com o templo, é fazer de uma parte do mundo o nosso tempo, o lugar que nos faz pensar e perceber o futuro.
Contemplar as cartas, confesso, é fazer templos; é ser digno de fazer, de um arcano, um quadro, um templo. É ter um olhar atento e profundo para fazer, daquilo que observo, algo sagrado. E sagrado é aquilo que só se esquece quando se perde a humanidade. E humano é aquele que jamais esquece o que é sagrado.
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Aurora nos céus de Göreme, quando esqueci o medo de altura. |
Deixei um pedaço do meu coração na Turquia. E vim com um pedaço dela no peito. Em meio a sincronias e caminhos de poemas, mantenho a serenidade e sigo lendo. Lendo as entranhas das circunstâncias, sem desejar nada. Só contemplando. De corpo fechado com tantos olhos [turcos] me rondando e mãos de Fátima afagando às vistas. À própria deusa, as devidas reverências. A gratidão.
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Artemis Ephesia, abundando fertilidade e proteção. |
Quem tem olhos, que veja. Que questione e anseie menos e contemple mais e sempre. A excelência do oráculo deve muito às percepções. Ao quanto de coração se põe no caminho e no ofício.
O corpo é breve. O que nos eterniza são os passos.
L.