3 de março de 2012

A FONTE DA TEMPERANÇA




À destra cristalina fonte murmureja,
numa clareira margeada de gramíneas.
Aqui a deusa sempre descansa da caça
e banha os membros virginais em água límpida.
Quando na gruta entrou, deu a uma das Ninfas
o escudo, o dardo, a aljava e o arco distendido;
outra nos braços recolheu a sua roupa;
duas lhe descalçaram os pés; a mais sábia,
a ismênide Crócale ata-lhe os cabelos ,
antes à nuca, embora ela os seus soltasse.
Néfele, Ránis, Híale, Fíale e Pseca
apanham água e vertem-na com grandes ânforas.

Ovídio | Metamorfoses, Livro III.

La saletta di Diana e Atteone | Parmigianino, século XV.



O tarô vai muito além daquilo que mostra e ainda mais longe daquilo que esconde. Para se ter ideia do poder da metáfora, um trunfo pode sugerir muito mais relações iconográficas do que uma leitura de imagens pode imaginar alcançar. Uma operação alquímica se estabelece entre fontes pictóricas de várias naturezas e possibilidades. A arte das cartas é, por excelência, a arte da combinação.

Tenho visto há alguns anos um trunfo curioso em diversos fóruns e publicações importadas. Ele faz parte do dito tarocchi de Alessandro Sforza, do século XV, preservado na coleção do Museo Castello Ursino em Catania, na Sicília. Debruçando-se sobre a lâmina a partir de um olhar simbólico, pode-se perceber que a figura feminina está bem acomodada sobre um cervo. Em suas mãos, prováveis ânforas tendo seus conteúdos misturados. TEMPERANZA, como bem se conhece. A dinâmica dos braços confirma o protótipo do décimo-quarto Arcano Maior.


La Temperanza | Tarocchi di Alessandro Sforza di Maestro Ferrarese (1450-1480). Museo di Castello Ursino, Catania.



Existem certos códigos aparentemente inacessíveis nestas pranchas antigas. Por ora deixo Sophrosyne (o conceito de moderação para os gregos), assim como os elefantes de Cesare Ripa e Etteilla. Somente um banho de pesquisa pode desencadear certa coerência de significado. Ou no mínimo um encantamento visual: pode-se configurar de tudo nestas cartas. Ater-se à mulher nua como uma representação de uma deusa é um mergulho no rito combinatório de atributos e sentidos. Um Olimpo pode ser escavado nos arcanos, mas com a necessária distância para não conjurar o caos simbólico. Assim o caráter divino dessas figuras nômades toma forma e complementa o esboço histórico.

Temperantia | Cesare Ripa, 1603.
La Temperance
| Grand Etteilla II, 1838.



Esta mulher sobre o gamo é Diana, a inspiradora deusa da caça. A virgem donzela que corre no Nemi. Embora não haja resquícios do crescente lunar sobre sua testa, a analogia é absoluta e perdura.
Diana sorpresa al bagno da Atteone | Cavalier D'Arpino, século XVI.




Acteon era um excelente caçador que se aventurava pelas florestas. Filho de Aristeu e neto de Cadmo, teve um destino nada invejável: ao cometer a indiscrição de admirar Diana se banhando junto ao seu cortejo de ninfas, pagou caro pela ira da grande deusa, que o transformou em um cervo. Logo em seguida, seus cinquenta cães não o reconheceram e o devoraram. Eternizada nas Metamorfoses de Ovídio, a fábula serve quase de atalho para o conceito que hoje se atribui ao décimo-quarto Arcano Maior. Em Camões também se dá o caso, o que tonifica o poder do mito indo além das Belas Artes.

Enquanto aí, à linfa, se lava a Titânide,
eis que o neto de Cadmo, deixando o trabalho
e errando em bosque ignoto com incertos passos,
chega ao recanto sacro; assim quis o destino.
Tão logo entrou na gruta úmida de fontes,
as ninfas nuas, vendo o homem, tal como estavam,
os peitos batem, e de súbito alarido
enchem o bosque, e rodearam a Diana,
cobrindo-a com seus corpos. Porém, é mais alta
a deusa que elas e ultrapassa-as, colo acima.
A cor, que sói tingir as nuvens quando o sol
as fere pela frente ou a da aurora púrpura,
foi a do vulto visto sem véu de Diana.
E ainda que o seu séqüito a rodeasse,
ela mostrou-se oblíqua e virou a cabeça
para trás; desejando ter à mão as setas,
a água que havia asperge no rosto do homem.
Molha os cabelos dele com água ultriz,
e lhe anuncia assim a iminente ruína:
“Agora, conta que me viste sem a veste,
se puderes.” Sem mais ameaças, espalha
na úmida testa chifres de cervo longevo,
estica-lhe o pescoço e aguça-lhe as orelhas,
muda em patas as mãos, e os seus braços em pernas
longas e com manchado pelo o corpo cobre-lhe;
e lhe põe medo. Foge o herói autonoéide
e admira-se de ser tão veloz na corrida.
Quando deveras vê o rosto e os chifres n’água,
“Infeliz de mim” quis dizer, e a voz não veio;
gemeu, e a voz foi isso; e em face alheia lágrimas
fluíram. Só sobrou-lhe a primitiva mente.


Acteon e Diana | Detalhes do afresco de Parmigianino.



Ainda sobre o arcano de Alessandro Sforza, Diana verte o cálice sobre o seu próprio sexo, coberto bela mão esquerda. Essa passagem serviria de ensinamento devido à práxis da época, quando se pretendia basear-se na mitologia para aplicar uma filosofia moral. A imagem mostra que o conceito da virtude vai além de domar a sensualidade e os prazeres carnais. Essa concepção iconográfica tonifica o conceito do rito de Anados, quando a deusa emerge anualmente e enaltece a própria virgindade banhando-se em uma fonte sagrada. O gesto talvez esteja longe de ser uma tentativa de controlar os ardores do sexo, mas sim a expressão clara da renovação da sua pureza virginal ao ligar os líquidos da terra com os seus próprios fluidos. Água e Água.



Temperantia | Gravura de Hans Collaert, 1557.



O final trágico de Acteon dialoga com a ideia da deturpação da virgindade de uma deusa por um mortal. E sendo o cervo a personificação do “esposo divino” sempre em busca de pretensas esposas e da fonte em que possa matar a sua sede, a transfiguração do homem em animal tem sua razão poética. Entende-se que foi uma atitude coerente a de Diana, dada a ousadia do caçador em profanar seu rito de purificação partilhado apenas entre as ninfas. A face cristalina da deusa se impõe.


Diana e Atteone | Matteo Balducci, século XVI.


Circundam-no e enfiam-lhe o focinho ao corpo,
dilacerando-o sob falsa imagem de cervo,
até que por feridas mil morrendo, dizem,
a ira de Diana Arqueira saciou-se.
A opinião se dividiu: a uns a deusa
pareceu mais cruel que o justo; a outros, digna
de austera virgindade. A razão tem dois lados.


O valor moral do episódio denuncia, portanto, uma postura temperante necessária: o homem deve domar os próprios instintos para atingir as águas da moderação. O cervo também assume a suavidade animal, que prefere a solidão aos tumultos da floresta. Serenidade, parcimônia e medo, outro atributo do temperante – o exagero é indigno. E a ira da deusa não pode ser confundida com perservidade tal como foi encarada por artistas e poetas desde a época de Parmigianino. A cada um aquilo que lhe cabe, simples e justo assim. Diana, mesmo em plena delicadeza prateada, é a regente do selvagem. Depois, preterida essa possível ligação da deusa para as futuras representações pictóricas da virtude cardeal (ao lado da Força, Justiça e Prudência), a Temperança assume o anonimato da alegoria, ainda que feminino. É todas elas, então.




Afresco encontrado na Hungria nos anos 2000, atribuído a Botticelli.



Diana, a caçadora. Diana, a deusa lunar. A de muitos seios, conforme define a antiquíssima fonte italiana baseada na escultura encontrada em Éfeso. Por vezes a alegoria surge com um peito à mostra: a castidade dando lugar à abundância. E assim, com as mamas à mostra, Frieda Harris concebe uma das lâminas mais lindas e enigmáticas do Tarô de Thoth idealizado por Aleister Crowley, que por sua vez conecta à Sagitário a deusa alquimista: o Centauro lança um sorriso a Ártemis. Logo abaixo de suas faces, recebe uma flecha perfurando o arco(-íris) de seus ombros. A referência garante a presença da deusa na modernidade do Tarô. Uma homenagem da Besta às gerações futuras. A Senhora da Arte prevalece, definitivamente.


Fontana di Diana Efesina a Tivoli, Villa D'Este | Itália, século XVI.
Art | Crowley-Harris Thoth Tarot. AGMüller, 1986.




A Temperança é um ritual. Opera alchimica. A fonte de cura das atitudes, a oportunidade de administrar a vida de acordo com um código intuitivo de conduta, visualizando as reações para toda e cada empreitada. Só a intenção de misturar os fluidos já requer habilidade. E implica a contenção sobre os resultados. Mesmo que em algumas representações seja possível ver Diana em pose sexual com o caçador-cervo, definindo-o como o seu consorte, na maior parte das versões ele se contém. Consente o erro pela tentação ao assumir sua condição de animal.


Diana and Actaeon | Balthus, 1954.




Mas o tarô é humano, assim como os deuses em suas emoções e fervores. Vieram de nós na mesma medida que os Trunfos vieram da poesia. Esse aparente resgate da fonte divina das lâminas vale tanto para ressaltar sua força simbólica quanto para exigir respeito ao que foi e continua sendo sagrado. Em cada enigma de tinta embaralhado a esmo. Em cada um que o lê. Vida longa às referências históricas e literárias. Elas são fontes de analogias para embebedar o homo ludens sedento por velhos novos saberes.

Aliás, fechando com Crowley, essa fonte de sabedoria pode ser vislumbrada pelo aforisma Visita Interiora Terrae Rectificando Invenies Occultum Lapidem: visitar o interior da terra é a metáfora possível para o cerne de si mesmo. Retificar o controle absoluto dos próprios verbos, das próprias ações. Combinações da própria história. Mesmo que a narrativa se perca com o tempo e só um fragmento possa vir a sugerir suas relações mitológicas. A pedra filosofal é cristalina na justa medida dos jarros. Tanto quanto a face da deusa.





BIBLIOGRAFIA CONSULTADA


CROWLEY, Aleister. The Book of Thoth. Weiser Books, 1996.

FRAZER, Sir James George. O Ramo de Ouro. Círculo do Livro, 1986.

GRAVES, Robert. A Deusa Branca. Bertrand Brasil, 2003.

GRIMASSI, Raven. Italian Witchcraft. Llewellyn, 2000.

RIPA, Cesare. Iconologia. TEA, 2008.
REFERÊNCIAS | internetIl Parmigianino a Fontanellato: La favola di Diana e Atteone | Primo Casalini
http://www.arengario.net/momenti/momenti25.html
La saletta di Diana e Atteone nel Castello di Fontanellato | Raffaela Terribile
http://rebstein.wordpress.com/2011/02/28/diana-e-atteone/

'Metamorfoses' em tradução | Raimundo Nonato Barbosa e Carvalho
http://www.usp.br/verve/coordenadores/raimundocarvalho/rascunhos/metamorfosesovidio-raimundocarvalho.pdf

6 comentários:

Vera Chrystina disse...

Muito bom, Leo. Parabéns pelo texto!

João Moreira disse...

"Elas são fontes de analogias para embebedar o homo ludens sedento por velhos novos saberes. ... E sabores.

Delicioso post para depois do almoço dominical!

Forte abraço!!

AugustoCrowley disse...

Adorei também!!

AugustoCrowley disse...

eu já prefiros os dogs, tinha uma cadelinha que quando eu ia jogar taro ficava sentadinha proximo as cartas.Parecia que sabia que era hora de ficar quietinha ali,protegendo, porque no geral ela era bem espuleta.

Alexsander disse...

Divino, Leo... Mais uma importante gota d'água para cair no vinho e libertar os muitos da embriagues maionésica que tanto se faz presente nesse mundo tarólogico, esotérico e afins. Amei!

D'Arcano disse...

Não tinha passado por este texto, antes. Como sempre: palavras temperadas, na alquimia do conhecimento assertivo para expandir a leitura dos símbolos. Foi maravilhoso enxergar Diana neste arcano-virtude e (re)aprender.