F.W.Guerin | Young Woman, 1902.
Nós costuramos
com a ponta da língua as flores no corpo
Os vértices dos ventos
Os cardos, as silvas
Os crespos sulcos do tempo
Turvamos os mares e as minas de água
as névoas secretas
onde as essências se afastam
À nossa passagem
Nós rojamos o tojo
Nós vergamos o luto
Nós plantamos as rosas selvagens
No vaticínio da aragem
SABAT
Maria Teresa Horta, 2006
'La Force', de Jean Noblet e 'Fuerza', de Salvador Dalí: arcanos do movimento sublime.
A imagem já me é viciada: a mulher que domina o leão é uma feiticeira. Lia esse poema de uma amiga [e uma das mais importantes feiticeiras de toda a poesia portuguesa] na varanda enquanto caía uma chuva fina. Fiquei pensando nas encantadoras, nas sibilas que compõem o oráculo. Na correlação do composto "mulher com leão".
Hajo Banzhaf trouxe a ideia no Tarô e a Viagem do Herói, se não me engano. E desde então a vejo assim. Difícil encontrá-la sem flores trançadas pelo corpo. Quando abandona o chapéu lemniscata emprestado d'O Mago, assume a feminilidade e a felinização. O templo natural é o seu entorno. Manipula boca e juba como cordas de uma harpa. A dama escarlate de Crowley, pelas tintas e mãos serpentinas de Lady Harris, também dá conta do recado. Estrela, prostituta e sagrada. Aquela que manejava colunas é a que hoje sorri de leve com um felino em mãos. Da Fortitude ao Encantamento.
Claro que as outras mulheres arcanas são feiticeiras também. Todas, dependendo do momento e dos olhos do intérprete. Mas se temos a bruxa como a fêmea transgressora, é a da Força que se sobressai. A amante que conhece o próprio corpo, a que menstrua e prova do líquido desentranhado. A que dá um salto na fronteira entre os bons e desprezíveis constumes. A que gargalha na cara lavada dos fervorosos e que goza. A que corre com lobos. Com leões, naturalmente, emulados em cada casa de bruxa na figura majestosa do gato. E não cabe falar aqui sobre as problemáticas históricas da imagética feminina junto aos sortilégios. Cabe falar da poesia. E me perguntam alguns, maravilhados, que diabos tem a ver tarô com poesia. Ora, isso não se responde. Se sente. A compreensão de uma imagem por meio de palavras é tão extasiante quanto a via inversa, repare. Quando é que uma leitura lhe trouxe prazer, você se lembra? Então já existe um vislumbre da resposta. E não tem nada a ver com rimas e regras, só com a capacidade de conferir ou perceber beleza no grotesco, no selvagem e no vice-versa. Me lembrei da Rainha das Fadas, poema de Edmund Spenser. Una, a famosa "The Fairy Queene" do autor, pode ser familiar pela tela enfeitiçante de Briton Rivière. Referência poética paralela à de Hércules ou Sansão com seus respectivos animais, tão válida quanto.
The Strength | detalhe do Morgan-Greer Tarot. U.S. Games, 1986.
Meu maior apelo tem sido ao processo contínuo de aculturação do dito tarólogo. E tenho até receio dessas terminologias todas, porque particularmente me valho de leitura de imagens e realizo leituras de tarô. Logo, sou um leitor de imagens, algo que vai bem além da mesa de consultas. Passa pelo jardim e pelo cinema, impera na biblioteca e segue pela rua. Cruza com as músicas, vai pelo café da manhã, pelo teatro e ainda pelo cemitério. Flerta com as fotografias e as madrugadas. Aprender a ver vai além de esboçar os arcanos numa folha em branco, rasgá-la e proferir os significados tradicionais no cúmulo do improviso. Não é só isso. Não, não e não. O leitor realmente interessado no seu ofício transgride as próprias imagens, sempre se valendo delas. E se não transgride a si próprio, não arrisca a previsão, não consegue orientar e não encanta o consulente com as lâminas – seus próprios reflexos. O leão, veja bem, é um convite ao além do convencional.
Una and the Lion | Briton Rivière, 1860.
Letrar-se iconograficamente é mergulhar na sua própria cultura. Eis um feitiço possível: a sua mitologia pessoal, a sua bem-aventurança, o seu espaço determinam a leitura de mundo. Domar leões atemporais sempre nítidos. E também cavalgá-los rumo ao presente, de olho no passado e organizando o futuro. A poesia, portanto, transgride. Tal como a imagem, a língua das antigas crenças, segundo a ativista pagã Starhawk, é a poesia: um discurso mágico por excelência. Por isso o link. O caráter caleidoscópico da analogia é tão válido e tão forte quanto a mandíbula do rei da selva.
Dandy-Lion | silhouettemasterpiecetheatre.com
E a tal dama é desde sempre a encantadora de reis. Também de plantas, pássaros, sombras e lugares. Alegoria generosa à mulher moderna e à mulher antiga, com todas as ressalvas patriarcais. Roupagem de sacerdotisa e espelho da própria deusa, universal e plural. Até mesmo um tanto frágil na aparência, mas estrondosamente destemida: uma ode apaixonada aos desejos. É do grande Oswald Wirth a afirmação de que A Força não glorifica o vigor físico dos músculos, mas o exercício do potencial feminino, irresistível na sua doçura e na sutileza em vez das explosões da cólera e da brutalidade vista na lâmina do Visconti-Sforza, por exemplo.
Daí penso nas encenações simbólicas: a mulher casta do arcano II, a tal Papisa, deixa o seu posto [passivo, naturalmente] e vai brincar com o seu leão na clareira da floresta. Troca as páginas pela pelagem. A Imperatriz que alimenta o bichano e vai correndo brindar no Três de Copas, talvez? Bom, as possibilidades são inúmeras, porque as mulheres do tarô conversam entre si, furtivas. Cada uma como um livro aberto. Compêndio [infinito] de artifícios e charmes.
Fearless | Anahata Katkin.
Tenha um longo e perfeito Dia de Bruxas. Eu permaneço em casa, trabalhando. Depois paro, bato um papo com o gato, rego o jardim e medito ao longo do corredor intransitável de heras e flores. Seco os pés, volto pra dentro e trabalho mais um tempo ouvindo alguma feiticeira proferindo suas graças. Billie Holiday, Nina Simone. Ou Monica Salmaso, que descobri há pouco, graças aos orixás. Talvez Calcanhotto ou ainda Loreena Mckennitt. Ah, Bethânia e Madeleine Peyroux não podem faltar. Cada uma um mundo. Um feitiço. Como a imagem e o seu potencial de talismã.
A propósito, reúna as damas de todos os seus baralhos. Disponha todas elas em círculo, contando com você. Pronto, há um sabá acontecendo. Nessa arena de rituais que é o tarô, a dança espiral das metáforas não terá fim. Serão essas musas, silenciosas, no corpo dos seus enigmas.
Celebremos.
Detalhe do oitavo Arcano Maior de A. E. Waite por Pamela Colman Smith (1910)
e foto de Sibyl Anikeeff por Edward Weston (1921).
Os vértices dos ventos
Os cardos, as silvas
Os crespos sulcos do tempo
Turvamos os mares e as minas de água
as névoas secretas
onde as essências se afastam
À nossa passagem
Nós rojamos o tojo
Nós vergamos o luto
Nós plantamos as rosas selvagens
No vaticínio da aragem
SABAT
Maria Teresa Horta, 2006
'La Force', de Jean Noblet e 'Fuerza', de Salvador Dalí: arcanos do movimento sublime.
A imagem já me é viciada: a mulher que domina o leão é uma feiticeira. Lia esse poema de uma amiga [e uma das mais importantes feiticeiras de toda a poesia portuguesa] na varanda enquanto caía uma chuva fina. Fiquei pensando nas encantadoras, nas sibilas que compõem o oráculo. Na correlação do composto "mulher com leão".
Hajo Banzhaf trouxe a ideia no Tarô e a Viagem do Herói, se não me engano. E desde então a vejo assim. Difícil encontrá-la sem flores trançadas pelo corpo. Quando abandona o chapéu lemniscata emprestado d'O Mago, assume a feminilidade e a felinização. O templo natural é o seu entorno. Manipula boca e juba como cordas de uma harpa. A dama escarlate de Crowley, pelas tintas e mãos serpentinas de Lady Harris, também dá conta do recado. Estrela, prostituta e sagrada. Aquela que manejava colunas é a que hoje sorri de leve com um felino em mãos. Da Fortitude ao Encantamento.
Claro que as outras mulheres arcanas são feiticeiras também. Todas, dependendo do momento e dos olhos do intérprete. Mas se temos a bruxa como a fêmea transgressora, é a da Força que se sobressai. A amante que conhece o próprio corpo, a que menstrua e prova do líquido desentranhado. A que dá um salto na fronteira entre os bons e desprezíveis constumes. A que gargalha na cara lavada dos fervorosos e que goza. A que corre com lobos. Com leões, naturalmente, emulados em cada casa de bruxa na figura majestosa do gato. E não cabe falar aqui sobre as problemáticas históricas da imagética feminina junto aos sortilégios. Cabe falar da poesia. E me perguntam alguns, maravilhados, que diabos tem a ver tarô com poesia. Ora, isso não se responde. Se sente. A compreensão de uma imagem por meio de palavras é tão extasiante quanto a via inversa, repare. Quando é que uma leitura lhe trouxe prazer, você se lembra? Então já existe um vislumbre da resposta. E não tem nada a ver com rimas e regras, só com a capacidade de conferir ou perceber beleza no grotesco, no selvagem e no vice-versa. Me lembrei da Rainha das Fadas, poema de Edmund Spenser. Una, a famosa "The Fairy Queene" do autor, pode ser familiar pela tela enfeitiçante de Briton Rivière. Referência poética paralela à de Hércules ou Sansão com seus respectivos animais, tão válida quanto.
The Strength | detalhe do Morgan-Greer Tarot. U.S. Games, 1986.
Meu maior apelo tem sido ao processo contínuo de aculturação do dito tarólogo. E tenho até receio dessas terminologias todas, porque particularmente me valho de leitura de imagens e realizo leituras de tarô. Logo, sou um leitor de imagens, algo que vai bem além da mesa de consultas. Passa pelo jardim e pelo cinema, impera na biblioteca e segue pela rua. Cruza com as músicas, vai pelo café da manhã, pelo teatro e ainda pelo cemitério. Flerta com as fotografias e as madrugadas. Aprender a ver vai além de esboçar os arcanos numa folha em branco, rasgá-la e proferir os significados tradicionais no cúmulo do improviso. Não é só isso. Não, não e não. O leitor realmente interessado no seu ofício transgride as próprias imagens, sempre se valendo delas. E se não transgride a si próprio, não arrisca a previsão, não consegue orientar e não encanta o consulente com as lâminas – seus próprios reflexos. O leão, veja bem, é um convite ao além do convencional.
Una and the Lion | Briton Rivière, 1860.
Letrar-se iconograficamente é mergulhar na sua própria cultura. Eis um feitiço possível: a sua mitologia pessoal, a sua bem-aventurança, o seu espaço determinam a leitura de mundo. Domar leões atemporais sempre nítidos. E também cavalgá-los rumo ao presente, de olho no passado e organizando o futuro. A poesia, portanto, transgride. Tal como a imagem, a língua das antigas crenças, segundo a ativista pagã Starhawk, é a poesia: um discurso mágico por excelência. Por isso o link. O caráter caleidoscópico da analogia é tão válido e tão forte quanto a mandíbula do rei da selva.
Dandy-Lion | silhouettemasterpiecetheatre.com
E a tal dama é desde sempre a encantadora de reis. Também de plantas, pássaros, sombras e lugares. Alegoria generosa à mulher moderna e à mulher antiga, com todas as ressalvas patriarcais. Roupagem de sacerdotisa e espelho da própria deusa, universal e plural. Até mesmo um tanto frágil na aparência, mas estrondosamente destemida: uma ode apaixonada aos desejos. É do grande Oswald Wirth a afirmação de que A Força não glorifica o vigor físico dos músculos, mas o exercício do potencial feminino, irresistível na sua doçura e na sutileza em vez das explosões da cólera e da brutalidade vista na lâmina do Visconti-Sforza, por exemplo.
Daí penso nas encenações simbólicas: a mulher casta do arcano II, a tal Papisa, deixa o seu posto [passivo, naturalmente] e vai brincar com o seu leão na clareira da floresta. Troca as páginas pela pelagem. A Imperatriz que alimenta o bichano e vai correndo brindar no Três de Copas, talvez? Bom, as possibilidades são inúmeras, porque as mulheres do tarô conversam entre si, furtivas. Cada uma como um livro aberto. Compêndio [infinito] de artifícios e charmes.
Fearless | Anahata Katkin.
Tenha um longo e perfeito Dia de Bruxas. Eu permaneço em casa, trabalhando. Depois paro, bato um papo com o gato, rego o jardim e medito ao longo do corredor intransitável de heras e flores. Seco os pés, volto pra dentro e trabalho mais um tempo ouvindo alguma feiticeira proferindo suas graças. Billie Holiday, Nina Simone. Ou Monica Salmaso, que descobri há pouco, graças aos orixás. Talvez Calcanhotto ou ainda Loreena Mckennitt. Ah, Bethânia e Madeleine Peyroux não podem faltar. Cada uma um mundo. Um feitiço. Como a imagem e o seu potencial de talismã.
A propósito, reúna as damas de todos os seus baralhos. Disponha todas elas em círculo, contando com você. Pronto, há um sabá acontecendo. Nessa arena de rituais que é o tarô, a dança espiral das metáforas não terá fim. Serão essas musas, silenciosas, no corpo dos seus enigmas.
Celebremos.
Detalhe do oitavo Arcano Maior de A. E. Waite por Pamela Colman Smith (1910)
e foto de Sibyl Anikeeff por Edward Weston (1921).