16 de agosto de 2011

DO DEMÔNIO



O Diabo é uma das figuras mais interessantes de todo baralho de Tarô. Uma genial criação católica e um sucesso de vendas, de público, de culpas. Celebridade tão bem consolidada que se mantém prostrada sobre um pedestal ornamentado de crânios, sangue, fogo e perfume. Ostentação. Raízes na terra dos homens, essa coisa que não é homem e nem mulher, mas é mulher e homem. Detalhes, importantes detalhes. A casa dele.

Os arcanos, enquanto números de um festival folclórico absolutamente vivo no âmago da humanidade, servem aos mais atentos leitores de mundo. Esse que agora desfila é um dos pilares do imaginário: vem pomposo, todo trabalhado num mosaico de animais peçonhentos, fogos e venenos. A carta XV é um exercício de monstruosidade. É ela o portal para os pais que assassinam os filhos, os filhos que destroem os pais e os bichos de estimação, os espectros que não descansarão antes de corroer a família dos vivos e também aqueles profanam a própria carne de modo bruto e consciente. Tortura é elogio. Freak show ininterrupto.


O demônio de Jacques Vieville, de 1650, desfilando seus maus modos e perversidades. Le Diable, de Etteilla, cuja concepção encabeça Baphomet no centro dos destinos

Só se engana pelo Diabo quem quer. Ou quem o nega. O próprio medo é como uma corrente que une a ele, perfurando a carne e a alma. Presenças estranhas na calada da noite não são gratuitas. Frente a tantas teorias sobre o seu papel, ele ri. Louca e estranhamente. De si e dos homens que um dia invejou. Mas agora é um dos soberanos entre eles. Na terra e no mar dos pesadelos, sua santidade faz miséria. Terrores noturnos. O tarólogo que se prostra diante de sua imagem o trata como um arcano a mais, mesmo sabendo que ali é a fossa dos complexos, dos arrependimentos, das ganâncias e do pior de cada um. Arcano que confunde. Pai do bizarro. A mão que chacoalha o berço dos pecados é negra. E as unhas são pontudas.

Detalhe de The Devil | Swiss IJJ Tarot

A blasfêmia é uma especialidade. Os detalhes lhe servem sempre. Segue no céu o ritual do nojo, porque voa. Asas e tocha. Seria mesmo uma tocha o que carrega na mão esquerda? O fogo que pode incendiar a Terra. Ou ainda, por ser o pai da mentira, nos faz ver que esse o tal objeto é a lâmina de uma espada, manuseada sem nenhum cuidado. Cócegas na carne demoníaca. Voltemos os olhos, com cuidado, aos registros visuais históricos. São inúmeras as diferentes manifestações do mal. Gastrocéfalo, na maioria delas. Um rosto no abdome indica o deslocamento da sede intelectual (cabeça), agora posta ao serviço dos apetites mais baixos. Uma homenagem à Gula — uma de suas virtudes favoritas.
O gastrocéfalo na antiguidade do tarô e na recriação de Camoin e Jodorowsky

Também se vê que ele vê. Demais, por ser o mercador do excesso. Olhos nos joelhos para enxergar em todos os níveis da existência. A língua exposta é a reação rebelde às boas normas. Blá, blá, blá. Dane-se. Diálogos possíveis e recheados de palavrões com as pranchas de Mitelli. As orgias simbólicas é que trazem sentido ao Tarô.

Le Diable de Jean Dodal entre CVRIOSITA e ARPIA de Giuseppe Maria Mitelli

A curiosidade é um mal porque faz procriar a fofoca, a inveja, a pichação da tela harmônica que mantém as melhores famílias, as boas relações e os produtivos negócios. Deturpa tudo, não deixa nada como antes. As alegorias do grande bolonhês, acima, falam por si. Convergências tão altas que fazem doer os olhos. E os ouvidos, percebe?

La serpente magique de Etteilla lembra que é importante escolher bem para escolher sempre. Ele é o desdobramento do sexto arcano, Os Amantes. Depois do “sim”, a prisão pode ser pra sempre. A estrutura é triangular. E o que os olhos veem o coração pode sentir, de algum modo. Curioso é que ele pode mesmo assumir o papel do Anjo do Amor. Quando laços afetivos são regados com ciúmes, cobranças e carências exacerbadas, o fim é iminente. O ódio tomar lugar no culto. Ou não. Quando pensa na loucura, filha predileta às normalidades do Anjo de Trevas, percebe-se tardiamente que o caos reina. Exemplo já clássico das artimanhas desse evento divino é ANTICRISTO, do perturbado Lars Von Trier. Lição demoníaca obrigatória.

O aprisionamento afetivo iminente na lamina The Lovers, de Pamela Colman Smith. Cartaz de ANTICRISTO, de Lars Von Trier (2010)

Maldito és entre nós, profanador de almas. Perditorvn Raptor. Os altos e baixos apetites não poupam ninguém. Posterior ao sabbat é o ato de devorar. Agente mágico empregado para o mal por uma vontade perversa, segundo os passos de Eliphas Levi. Feitos os pedidos, paga-se o que deve. Caso contrário, o Contrário o caça. Encarna o sequestrador das almas [perdidas]. Uma brisa mitológica: provavelmente Plutão, deus do submundo, emerge de carruagem e deixan rastros de chamas após ter sequestrar uma certa jovem. Cena propícia a terrores noturnos.

14, Perditorvn Raptor – Rouen Tarot, século XVI

Falando na estrutura do ambiente, tem-se o submundo, a masmorra inacessível que Pamela Smith pintou bem abaixo dos lençóis freáticos d’A Temperança. Na verdade – se é que há alguma aqui – a fotografia primordial do arcano enquadra o próprio ritual em homenagem à abominável criatura. Ali é hotpoint dos pecadores e desesperados. A sombra fala através do espelho e o cenário é digno de Gustave Doré ao imaginar a obra prima de Dante Alighieri.

New Vision Tarot - Lo Scarabeo

Tão confundido, tão mal dignificado, tão desprezado. Mestre dos disfarces, o Diabo acaba sujando o nome dos deuses que lhe deram os protótipos de imagem e conceito. Pobre Pã. Pobres faunos. Mas eles servem, ricos, às aproximações simbólicas tão caras à diversidade de temas e tarôs espalhados por aí. As palavras-chaves são quase sempre as mesmas: obstáculos, condicionamentos, perda da liberdade, obsessão, materialismo. E também, graças a Deus(?), potencial criativo, humor. Muito humor, negro ou não. Sedução não falta na passagem da literatura pagã ao inferno dos clássicos depois de Cristo.


Famiglia di satiri che compie un sacrificio a Pan, de Bernardo Luini
Pinacoteca di Brera, Milão


Pã é um dos favoritos. Nessa pintura de Barnardino Luini se vê a mais que nítida associação dos escravos acorrentados com os sátiros. Essas aproximações arcanas só são produtivas quando se entende a natureza do trunfo, que é vária. Disforme. Polissêmica. Sempre nos chamando e pressupondo amor e dedicação. Exatamente como os seus outros 77 membros, tão queridos. Tão subjetivos. 


Baphomet, sua mais popular faceta, embebida em ocultismos e desinformações, se alimenta de cultura pop


Sexo, drogas e cartomancia. O underground é válido. E é válido falar da voz da Cabra Mística e de suas poses sombrias, do medo que só ele causa e só ele cura, da obsessão e da competitividade e também da criatividade que tonifica os perversos. A fonte de sangue e vísceras da qual bebe o Diabo é inesgotável, como as suas formas ao longo da escrita e da imagem, sobre ele e suas danças. A leitura do tarô informa e recruta os sentidos. E no caso dessa lâmina, tão afiada, a transformação pode ser inimaginável. É a possessão possível. E o inferno é tão simbólico e animador que continuamos dançando à luz dessas imagens e desses detalhes. Nós, os seus feiticeiros – todos acorrentados à poesia escarrada no corpo, ofuscados pelo brilho da Estrela da Manhã.

























O inferno somos nós,
sempre.


Leo

5 de agosto de 2011

UM ORÁCULO EM DELFOS


Acordei e disse para mim mesmo: estou na Grécia, onde tudo começou,
se é que as coisas, diferentemente dos artigos da enciclopédia sonhada, têm início.

Jorge Luis Borges



Arcanos sobre pedras do Santuário de Apollo em Delphi, na Grécia.


Peregrinar. Verbo que traduz bem o ofício de todo e qualquer leitor de imagens. Quando destrinchamos um lugar, estamos lendo os sinais do tempo, as conversas e as situações, boas e terríveis. É um trabalho silencioso porque toda leitura é assim. Não se admite barulho externo quando se está imerso num mundo que implora pela sua atenção. E pelo Mediterrâneo tenho, pois, peregrinado.

30 dias desbravando caminhos - alguns, bem conhecidos. Outros, totalmente inimagináveis pelo trajeto mental de viajante, ao escolher hotéis e programar passeios. Rotas sagradas de leitura. Ir à Grécia seria um dos meus maiores sonhos se realizando em pleno verão. Dos seis grandes sítios arqueológicos visitados, Delphi seria o mais difícil de se chegar. Imaginei que seria assim. E foi. Mas a experiência de peregrinar descalço sobre aquela terra sagrada, em honra a uma divindade luminosa pela qual tenho especial apreço, foi revelador. No mínimo.




Apollo "arcanizado" no dito Tarocchi di Mantegna e n'O Sol do originalíssimo Tarocchini di Mitelli.


Apollo é o padroeiro dos poetas e, em sua natureza pítica, senhor das profecias. Levei o Tarô para receber essas energias e abençoar palavra e imagem, pedindo que se estendesse a todos os que realmente se dedicam e merecem a serenidade desencadeada pelo oráculo. A mesma serenidade forjada no rosto majestoso do Auriga encontrado quase intacto em Delphi, o correspondente direto d'O Carro. Os cavalos se perderam nas pedras do tempo, mas o protótipo do trunfo está lá. Intacto e à vontade. Quem o guiava, talvez, eram os cisnes sagrados do deus.




Who´s in the Chariot? O auriga délfico e O Carro do Tarot de Paris.
Apolo e os cisnes habitando o arcano.




Entendi que a resposta à Esfinge depende muito do Conhece a ti mesmo. Esse mandamento ecoa sobre todo e qualquer maço de cartas. Quem somos, enquanto tarólogos? Somos os arcanos? Quem são os nossos monstros e quem são os nossos heróis? Respondi de olhos fechados, agradecendo pela primeira oportunidade de prostrar-se diante dela. E entendi que, revendo toda a odisseia mediterrânea, a mensagem estava dada.



A Esfinge, um presente de Naxos para demonstrar respeito ao oráculo.


Me veio à memória a época em que morei na Itália. Houve o contato marcante com Ludovica, uma verdadeira strega que perambulava pelas vielas de Perugia, conversando com os gatos. Me disse, numa das vezes em que nos encontramos, que os filhos del Dio della Luce se reconhecem pela verdade e pela justeza. "La giustizia, Leonardo. La vita è magia. E la magia si può con la verità". A partir da experiência na Sicília, onde encontrei o oitavo arcano em frente a uma cafeteria {encontro devidamente registrado aqui}, tudo começou a ter um novo sentido. Serendipidade. Então a Pitonisa falou por ela.



A sibila délfica em pleno diálogo iconográfico com o segundo arcano maior.


Conhecer cada vez mais os meandros de mim mesmo. Conhecer o profundo das imagens. Mergulhar nas palavras e extrair delas o que é essencial, o que surte efeito. Não a quantidade; a qualidade. E espiritualizar-se com verdade, permitindo que o medo se dissolva, mas aos poucos. O famoso μηδεν αγαν (Nada em excesso) vale. E ainda nos remete à simplificação necessária do estudo e da prática do Tarô. 

Do alto do Parnaso, com os arcanos em leque, pude compreender Ludovica. Conhecer-se primeiro para depois conhecer o outro a partir do oráculo. E perceber, pela apodrecida Píton, que as sombras também são importantes e merecem luz. As intempéries tão divinas quanto a própria peregrinação. As leituras truncadas, o receio de interpretar erroneamente uma carta ou mesmo de orientar sem ver com exatidão também são partes importantes do processo tarológico. Nenhum templo nasce pronto.



Porque a tua luz, Apollo,
É a que aproxima todos os destinos



Somos andarilhos sobre imagens. As pedras são do mesmo material dos desenhos. As mensagens têm texturas semelhantes às dos augúrios das Sibilas. A metáfora se descomplica e desabrocha no entendimento de quem nos ouve. Sobre as imagens. E assim eu traço os paralelos entre Delphi e a confirmação da minha escolha e do meu caminho. O arcano 19 marselhês encena Apollo e seu irmão Dioniso: uma aproximação sutil entre a beleza e o deleite. A presença das duas crianças sob o rei dos astros está secretamente relacionada ao conceito de "Sol sempre jovem" que os antigos mantinham. Baco era considerado "o mesmo que o Sol". E é Febo, o eterno jovem, quem lhe estica o braço.



O arcano muda quando você diviniza a visão sobre ele.


O Tarô é povoado pelos deuses. 
Todos norteados pelo Ônfalo, a pedra saturnina conservada no museu délfico, o centro inspirador de todos os oraculistas. No centro do Mundo, a Sibila dança nas palavras e reconfigura a nossa linguagem arcana. A cada instante. Tenho, portanto, peregrinado. E também constatado, ao longo do meu ofício de trajeto por entre tantos campos sagrados, que a poesia que anima os símbolos permite até mesmo que a pobre coroa de penas [de cisne?] d´O Louco seja tão sagrada quanto a de louro. 



Os deuses irmãos se encontram também na iconografia tarológica. Olhos livres para vê-los.
Um close n'O Louco do Visconti Sforza e em Apollo do grande pintor Gianbattista Tiepolo, 1757.



Voltando ao Brasil é que pude me dar conta do quanto tem sido importante essa visita aos deuses. Essa visita deles em mim, turbinando a fome de pesquisa e vivência desses 78 mapas de locais de poder. E desejo o mesmo a quem trilha esse caminho de descoberta do mundo, dos homens e dos arcanos. 


Aprendamos a ler nas entrelinhas. Entre os traços. Perceber que o Tarô é um instrumento de aproximação de ideias e pessoas. Nada mais que o próprio umbigo do mundo fragmentado em lâminas afiadíssimas de sabedoria, norteadoras a quem for digno de seus augúrios.





Lembro de Ludovica com todo o carinho que se pode lembrar de uma avó querida que nos faz odiar A Morte por estar tão próxima dela. Por consequência, recordei as palavras da escritora Frances Mayes que no delicioso Sob o Sol da Toscana provou ser absorvida pelos sussurros apolíneos das coisas e dos lugares. (...) Como se estivesse arejando um baralho, minha cabeça percebe de relance os milhares de chances, desde as triviais às profundas, que convergiram para recriar este lugar. Qualquer desvio arbitrário ao longo do caminho, e eu estaria em outra parte; seria uma pessoa diferente. De onde é que veio a expressão "um lugar ao sol"? Meus processos de pensamento racional sempre se apegam à ideia do livre arbítrio, do acontecimento aleatório. Meu sangue, porém, acompanha facilmente a corrente do destino. 

E assim é. E que os justos e conhecedores de si mesmos
ouçam {até o fim} a música de Apollo.






Com afeto e Verdade,

Leo