Woman Reading, 1890. National Media Museum, Kodak Gallery
Me desculpem os high-techs, mas A Papisa tem um livro no colo. Precisa dele. E o que há naquelas páginas? Pouco importa agora. O que vale é saber do objeto. O que vale é o livro.
Bibliotecas, salas de leitura, livrarias e sebos são alguns dos meus lugares favoritos. O universo do livro me atravessa. A imagem, os formatos, as capas, os miolos. E mulheres lendo, além de um vasto primor no mundo das artes plásticas e da fotografia, sempre agradam aos meus olhos. Sou suspeito — no baralho, eu pego a tal sacerdotisa, sempre ornada com luas aos pés e turbantes enfeitados, e dirijo a visão direto às suas mãos. O livro, o livro.
Nas antigas imagens medievais e renascentistas, vejo ornamentos e detalhes essenciais aos pintores que as conceberam. Giotto e tantos outros sabiam que o livro emprega um simbolismo mais complexo que um vaso de flores, que geralmente tinha a intenção de honrar uma cidade, por exemplo. Uma pessoa lendo um livro, de qualquer idade e em qualquer situação, não só descreve como aumenta a sua grandeza. Repare. A sabedoria impressa é sedutora. Se um livro te comove porque é toca na sua humanidade. Apruma a visão e sofistica a manutenção da vida.
Em Florença, pude ver a grandeza do livro em inúmeras telas. Algumas de forma exagerada, com grandes calhamaços próximos às damas e em outras de maneira discreta, como no caso de Simone Martini em sua Anunciação: a Virgem talvez mais sábia que o arcanjo lhe trazendo o ramo de oliveira. Alguém lendo ou ao menos portando um livro cria metonímias nas quais o leitor passa a ser pincelado pelas páginas, tomando o cenário por essa simples atitude.
A Papisa, sabemos, não está voltada às paginas no momento da foto primordial do Tarô. Ela acalenta o livro. Tem domínio sobre ele porque é uma extensão de si própria. Essa mulher pode muito bem ser uma fidelíssima servidora da Sabedoria, antiga deusa destronada e sempre oculta no raciocínio dos verdadeiros simples e pretensos eruditos. A donzela, a mãe e a anciã do arcano II dialogam, meditam sobre e comungam com Ela.
Assim como tantos gostariam de saber de fato qual livro Hamlet segura, eu gostaria de saber qual é o livro da grande bruxa dos Maiores. Se bem que pouco importa, confesso. E não me venha com a Torat ou o Yin-Yang de Wirth. Palavras, palavras e palavras, Polônio. A leitura é sagrada, eu sei. Mas A Sacerdotisa é o livro, mais que sua fé, suas intimidades e seus sacramentos. E se está logo no segundo quadro desse museu nômade da vida, é porque a dica está bem clara. Basta lê-la.
Marilyn Monroe por Elliott Erwitt, 1955
Marilyn Monroe por Elliott Erwitt, 1955
Aliás, o simples saber, querer, ou tentar ler nos confere um pouco de Papisa. Todos que se sentam confortavelmente (ou nem tanto) para degustar algumas páginas herdam o ritual silencioso do arcano. É exatamente isso que a torna imortal entre as côrtes e as alegorias vizinhas. E ao redor se engendra o silêncio, a mais bela canção do mundo.
Boas leituras.
L.
8 comentários:
Simplesmente Fantástico
Ao lermos as cartas, já nos postamos entre mundos. Ao lermos a Sacerdotisa, não só entre mundos, como entre páginas. A proposta do autor(a?), motivada pelo momento, local e conexão (ões...) incentiva ou não o leitor a propor novas leituras, (tão) diferentes da inicialmente motivada, que por sua vez, transpostas pela fala levarão o ouvinte, motivo principal dessa leitura, a entender, não entender ou simplesmente desconhecer o que inicialmente ela, e somente ela, havia lido. Telefone sem fio com cara de conto de fadas.
Ou seria o contrário?
Fiquemos com os livros, Emanuel. Misteriosos, claros, imperceptíveis, tediosos, essenciais. Ela diria que é o mais sensato a se fazer. Longa vida a eles.
Olá, Leonardo!Fiquei pensando será mesmo que A Papisa segura um livro ou será um diário com seus segredos...
sabe que qdo olha para ela, vejo ela em um momento de recordação, experiencia ja vivida ...e que por mais simples que seja, estava anotado em seu livro, ler a historia de vida que ja passou ... e analisar que realmente o que esta sendo vivido hj é totalmente diferente de antes, são segredos, receitas,etc.
Muito bom!
A experiência que a Sacerdotisa trás é riquíssima mesmo. Aquilo de olhar e saber os passos. Ter um livro "anotado".
Muito bom o texto.
Abraços!
Na Papisa eu vejo Clarice Lispector, no livro os Segredos de Clarice.
Texto maravilhoso.
Digno da Papisa.
Digno de quem acomapnha o Café Tarot.
Abraços
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