A exposição brasileira da artista Sophie Calle conta com uma equipe de profissionais que dão palestras, workshops e minicursos sobre escrita criativa e novas mídias, por exemplo, tudo no SESC Pompéia onde a instalação permanece até o dia 7 de setembro. No blog da exposição, os visitantes podem contribuir com sua própria arte - desenho, vídeo, fotografia, texto. Fiz minha parte. Desde a matéria na BRAVO! estava com água na boca pra participar de alguma forma. Ah, e serão escolhidos 20 trabalhos para estrelar a exposição em Salvador, a próxima parada docuide de você. Bompacaramba.
2009 é o ano da França no Brasil. Acordos políticos são feitos, programas culturais negociados, o Airbus 447 caiu e os laços entre as duas nações se estreitam. Um amarrado ao outro – por comunhão, por afinidade, por arte, por tristeza, por cortesia, por beleza. Essa rima não foi previamente pensada, assim como não foi esperado o sucesso da exposiçãoPrenez soin de vousda artista francesa Sophie Calle, que da Bienal de Veneza ganhou porto em São Paulo.
Sophie Calle e o telefone criado para ela pelo arquiteto americano Frank Gehry.
Meu primeiro contato com Sophie Calle foi no ano passado, durante o curso de francês. A Label France, publicação do governo que traz notícias da França em língua portuguesa, publicou a notícia do sucesso da artista contemporânea no país e, pelo que me lembro, anunciava sua passagem pelo Brasil. Gostei muito da ideia. Se para alguns (ou a maioria, talvez) Calle não passa de uma doida que não soube digerir um fora, para outros (a minoria, portanto?) sua obra é encantadora por ser a reprodução da realidade, da sua íntima realidade nas mãos de estranhas e também de amigas que manuseiam sua vida amorosa e daí são fotografadas, anotadas, filmadas. Mulheres que respondem por ela.
Os painéis ininterruptos de interpretações.
No âmbito das Letras francesas, Calle se destaca pela interdisciplinaridade – suas explorações, que misturam fotos com escrita e vídeos com músicas transformam o seu relacionamento (ou melhor, o seu rompimento) afetivo em metalinguagem. Meta arte.
A clown Meriem Menant e uma das paredes da instalação.
Mas se Sophie autoriza as interpretações de sua carta, me proponho aqui neste espaço a dar meu parecer. Pelo tarô, é claro. Não pelo e-mail em si, mas pela repercussão, pela obra, pela pessoa. Sophie diz: “Não exponho minha intimidade. Minha obra é sobre textos, imagens, instalações. Náo é um diário ou um blog.” Atitude do segundo arcano maior, A Sacerdotisa. Realmente nada se sabe do relacionamento com o escritor Grégoire Bouillier. Tanto que ela o identifica como X. Apenas o que ELE relata na carta, disponível a todo e qualquer visitante da exposição, é que dá repertório pra imaginar o caso amoroso. Ela, por sua vez, deixa sem resposta a questão “o que é realidade e o que é ficção”.
Prenez soin de vous no Pavilhão Francês da Bienal de Veneza.
"Eu pinto minha própria realidade", dizia a polêmica Frida Kahlo. É exatamente o que a também polêmica Sophie declara. Diante desse enigma tão bem trabalhado, acaba sendo impossível não associar a performance de Calle às cartas. Não por ter convocado a taróloga Maud Kristen para um das interpretações, mas por ser nítido o casamento entre imagem e texto – a captura do real para o papel. Aliás, tudo derivou do papel em cuide de você, como num baralho, que abre possibilidades a uma pessoa. Do simbólico para o real. Genial. Original.
A atriz portuguesa Maria de Medeiros,
conhecida por interpretar Anaïs Nin em Henry & June.
Em vez de sofrer, ironiza: “sou uma artista”. Mesmo apelidada de “Duchamp da roupa suja emocional” pelos britânicos, Sophie não desmorona. Ela combina recursos, tempera conceitos, funde mídias. É o arcano 14 em seu melhor ângulo.
E dessa mania de transformar pés na bunda em instalações e livros, de ser voyeur das próprias experiências narradas para o mundo, sobrepõe-se a exposição do outro, do desconhecido. Aliás, Sophie (sabedoria) Calle (rua) é a própria sabedoria da rua. Auspicioso, não? Seguir um homem de Paris até Veneza por dois meses (tarefa inusitada digna do Arcano Sem Número) e anotar seus passos em papel e em pixels e como montar um quebra-cabeça no escuro. Ou então escrever uma peça sem conhecer os personagens. Ou trabalhar com o tarô. Esgotá-lo, se é que isso é possível. Fazemos isso quando deitamos as cartas: descobrimos o outro para compor um pedaço de nós mesmos. Lemos as emoções e pensamentos para entender os nossos. Um curta-metragem no papel. Uma parede em branco com telas ininterruptas de movimento. Interpretações.
Maud Kristen sentindo a carta.
Bom, por falar nelas, a mais óbvia que me chama a atenção é a de Maud Kristen. Pra quem não sabe, ela é uma das médiuns mais famosas e respeitadas da França. Atende empresas, presta consultoria paranormal, atua como clarividente e é autora de alguns livros como Filha das Estrelas, publicado no Brasil pela editora Pensamento e Tarot of Eden ao lado da artista plástica Alika Lindberg – baralho que ilustra sua coluna na obra de Sophie Calle.
Kristen é uma profissional interessante, dedicada e ambiciosa: afirma querer usar a intuição, as artes divinatórias e a mediunidade de forma “oficial” em processos de decisão tanto pessoais quanto coletivos. É bastante íntegra ao interpretar o e-mail destinado à Calle, expondo motivos e segredos de X. Kristen coloca o texto à sua frente, embaralha suas cartas e deita-as viradas para baixo. Depois, escolhe cinco delas, organiza-as em cruz e pergunta: O QUE ESTÁ POR TRÁS DESSA CARTA?
Olhemos as cartas. Elas são desfavoráveis.
Um velho de capuz sozinho com sua lanterna. Em sua solidão desencantada, não há muito lugar para o amor.ESSAS NÃO SÃO AS PALAVRAS DE UM HOMEM FELIZ, POR CAUSA DO EREMITA.
Atormentado por animais, ele tateia cegamente para tentar encontrar seu caminho... Morbidamente instável, ele é como um graveto ao vento.ESSAS NÃO SÃO AS PALAVRAS DE UM HOMEM ESTÁVEL, POR CAUSA DO LOUCO
A IMPERATRIZ – ELA CONTROLA A RETÓRICA.Foi com a colaboração da Impatriz – protetora dos escritores – e a destreza que ele tem com a linguagem que ele conseguiu compor essa carta.
Lobos uivam para a Lua frente ao reflexo ilusório de uma mulher nua na água... Estamos entre mentiras e ilusões, entre o medo do espelho e a fascinação narcisista, entre a confusão e a complacência.ESSAS NÃO SÃO AS PALAVRAS DE UM HOMEM SINCERO, POR CAUSA DA LUA.
ESSAS NÃO SÃO AS PALAVRAS DE UM HOMEM ADULTO E LIVRE, POR CAUSA DO ENFORCADO.
A parede de Kristen na instalação de Veneza.
A conclusão da tiragem de Maud Kristen é que "nenhuma das cartas fala do desejo, amor ou lembranças. Em confronto com a confusão da LUA, a distração e a poligamia do LOUCO, o cansaço, a lassidão e o desinteresse pelos outros do EREMITA, o desespero suicida do ENFORCADO, ele tenta através da IMPERATRIZ fazer um último esforço para explicar. O que está por trás dessa carta é pior do que o que ela diz. É a carta de um homem que está desesperado, ameaçado, que teve que fazer um grande esforço para conseguir dizer alguma coisa."
Maud Kristen e Sophie Calle na Galeria Emmanuel Perrotin.
Foto de Lisbeth Carre.
Eu gosto da explicação de Kristen. Por um lado é divertida, como tudo o que Sophie Calle faz. Por outro, parece que enaltece a Imperatriz com atributos “positivos” – por ser a única mulher do jogo, talvez? Não gosto de dar palpites em tiragens, a menos que eu seja convocado para isso. Mas a interpretação da profissional francesa, por integrar a exposição de Calle, tornou-se arte também. Está emoldurada numa parede branca e então propensa a qualquer tipo de reação dos visitantes e dos entendidos no assunto. Por ser um deles, fico feliz em saber que o tarô é uma ferramenta artística de valor terapêutico indiscutível que ressalta a importância de “cuidar de você”.
E é por isso mesmo que não poupo tempo para dizer que a Imperatriz é a própria Sophie – a que protege o escritor e é a dona da banca. Melhor dizendo, a que projeta o escritor, o tal autor do e-mail, Grégoire Bouillier.
A cara do livro a cara do convidado surpresa.
E também é o próprio Louco aquele convidado surpresa que caiu na teia de lençóis de Sophie. Memorialista francês, Grégoire é um escritor “lento”. Demorou para chegar às livrarias – característica do Eremita que ilustra a disposição de Kristen – e deixou registrado o relato da festa em que conheceu a sua ex, a própria Calle. A Lua, carta dos problemas afetivos, das discussões e dos malefícios causados pelo e por amor, seria a construção imaginária do confronto desse ex-casal na Festa Literária de Paraty, Entre Quatro Paredes.
Sophie e Grégoire na Flip 2009.
É lá que a Duchamp contemporânea lava a roupa suja e o autor da carta se defende, rebate e faz as pazes com a mulher discreta que sabe até onde é capaz de divulgar sua vida pessoal. Ou então vira amigo da mulher promissora regida pelo arcano 3 do centro do jogo, que dá a volta por cima. Mas é, ainda, o Enforcado. Já pensou visitar uma mostra derivada de um simples fora que você deu em alguém? Nunca desconfiei da capacidade das que levam esse nome grego. Sabedoria personificada até nos momentos de fossa.
O que me excita mesmo é que as interpretações continuam inesgotáveis.