17 de setembro de 2008

ARCANOS EM BRANCO

UM ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA NAS CARTAS DE TARÔ



"Um motorista, parado no sinal, subitamente se descobre cego. É o primeiro de uma 'treva branca' que logo se espalha incontrolavelmente. Resguardados em quarentena, os cegos vão descobrir reduzidos à essência humana, numa verdadeira viagem às trevas". Esta é descrição inicial do livro Ensaio sobre a Cegueira, livro de José Saramago publicado em 1995 e ganhador do Prêmio Nobel de Literatura. Neste ano, mais precisamente na última semana, foi lançado BLINDNESS, filme do brasileiro Fernando Meirelles baseado na obra do escritor português. Pode parecer impossível, num primeiro instante, analisar obras literárias e suas adaptações cinematográficas sobre o prisma do tarô. Impossível, no entanto, é deixar de fazer associações e encontrar pontos comuns que dialogam com os sentidos – principalmente com a visão, a primeira e a mais importante necessidade dos que se propõem a mergulhar no âmago das cartas.

Comecemos refletindo. E se todos os personagens das cartas forem cegos? Tentadora proposta: Na carta d´O Sol, duas pessoas se tateiam para constatar que se conhecem. Mãos errantes. O Eremita, obviamente, é aquele que movimenta a bengala a fim de saber por onde pisa. O Papa não vê aqueles que abençoa, percebe? Não imagina onde estão os tais fiéis e nem nota a mão de um dos cegos, estendida aos seus pés. O auriga d´O Carro é guiado pelos animais sabe-se lá para onde e até quando.



Após a explosão d´A Torre, os sobreviventes apalpam o solo para, talvez, encontrar abrigo dos destroços esféricos. A mulher banhada pel´A Estrela não saberia, portanto, que verte as ânforas em lugares impróprios – mas se todos estão cegos, ou melhor, são cegos, qualquer lugar é oportuno. A terra não é de mais ninguém, é de todos. Eis o paradoxo (do) invisível. A fome aumenta progressivamente e com ela a sujeira e o medo. Daí as andanças erradas d´O Louco, todo maltrapilho, seguido por um cão – esses sim, os animais, continuam vendo – dando espaço a qualquer conforto até que a chuva possa ser vista pela pele e as orações aos céus, clamando pela cura, possam ser ouvidas por alguma coisa, como no dia d´O Julgamento. Enxergam, sim, os cegos.





Essa viagem às trevas, talvez providenciada pelos olhos atentos do Diabo, seja uma oportunidade de resgatar a essência de cada um. O mar de leite é como o papel em que esboçam reis, luas e bufões. É nele que são reduzidas as pessoas, as coisas os mundos e suas visões. Sem nomes. A leitura se dá pelo tato e pela audição. Aprimoramento de sentidos em meio à miséria, ao vazio, ao alheio particular. Aliás, "quantos cegos são necessários para fazer uma cegueira?" O contágio é a forma de atingir a todos os humanos, um requisito imposto e aceito sem discussão à nova forma de vida e visão de si. E do Mundo, obviamente. Aqui se vê, o motivo de todos os protagonistas – da obra e do tarô – permanecerem de olhos abertos em direções distintas, independente da seqüência ou cena escolhida. Cada arcano olha. Nós reparamos. A Justiça nos olha e O Sol nos ofusca, jogando por terra a convencional escuridão. O branco é denso e uniforme, metáfora da iluminação súbita do homem e sua atitude a partir dessa novidade. Ambos os arcanos encaram quem se dispõe a manusear o baralho. Mas nos cega ou nos clareia a visão do enigma?


“O mundo está aqui dentro.” Aprisionados num manicômio – rapidamente associado às masmorras perturbadoras do 15º arcano ou mesmo a sinistra construção do próximo, a Casa Deus, espreitada por soldados do governo – a tela clara seria, então, um despir de máscaras do homem que, mesmo sem ver, ainda mascara sua desumanização, sua real cegueira. Despida, aparece brutal, animalesca. A narrativa tece os limites da necessidade, da paciência, da racionalidade.


A Torre de Aleister Crowley e Saramago, aquele que tudo vê.

O elenco não podia ser melhor. Gente branca como Julianne Moore e Mark Ruffalo, negra como Danny Glover, oriental como Sandra Oh, trabalhador comum, vivido por Gael Garcia Bernal e até prostituta, na pele de Alice Braga, estrelam a variedade de raças, idades, ocupações, nacionalidades e classes sociais. Variedade que deixa de existir quando a onda precipitada do mar de leite bate em suas vidas. Tais diferenças mostram que o inexplicável alcança a todos, aproxima e iguala as coisas. As pessoas. Boa sacada. Tanto do gênio português quanto do diretor fiel, já que no livro o leitor é inicialmente cego quanto à verdadeira natureza desses personagens.


Amparo natural: A Estrela e a prostituta (Alice Braga) vendo a chuva com a pele.

O caos que se instala na cidade anônima é o mesmo da cidade invisível em que atuam os arcanos do tarô. Um mundo de possibilidades num só olhar. Daí a importância da advertência escolhida pelo grande Saramago no espaço inicial da obra, retirado do Livro dos Conselhos de El-Rei Dom Duarte. Mais que uma premissa a uma leitura atenta do livro, é um mandamento ao estudo do tarô em toda a sua plenitude. “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” Reparar é libertar-se da superficialidade da visão para então aprofundar-se no interior daquilo que é o homem e, por fim, conhecê-lo. A cegueira é uma alegoria para a crise progressiva das sociedades capitalistas do século XX em diante, aproveitando o caráter atemporal da obra. Mostra os limites entre civilização e barbárie, rompidos pela nova ordem do todo. Pode, ainda, ser entendida como sintoma ou desencadeamento final da alienação do homem em relação a ele próprio.


Tato e dependência: detalhe do arcano O Sol e Julianne Moore com Mark Ruffalo.

A história também gera reflexões a respeito da inconsciência humana à ligação entre verdade e mecanismos de poder propostos pelo imponente Imperador, o arcano quatro que tudo vê de seu trono absoluto. As regras humanas são quebradas pelo abuso da força daquele que ousa enxergar, fazendo com que o instinto de sobrevivência tome conta dos demais. Repagina-se a corrupção, o adultério, a raiva e a insensibilidade, elementos também constantes no novo mundo. E claro, “em terra de cego, quem tem olho é escravo”. Ou dos outros ou da moral que lhe resta, até o dia da desforra que cega e liberta. “Organizar-se é, de certa maneira, começar a ter olhos.” Há um momento em que se faz possível a chance de uma reorganização. A realidade foi modificada pelo fenômeno e agora os que resistiram a ele devem lapidar mais uma vez sua visão de mundo. Os valores de respeito mútuo e igualdade são então deturpados, mas não extintos. A mulher do médico, a única que enxerga, conserva compaixão e preocupação – talvez derivados do amor ao marido.



A Justiça é cega. Ou finge ser, como a personagem de Moore. Empunha uma espada (aqui no caso uma necessária tesoura) e uma balança, metáfora da justa medida, do equilíbrio entre extremos – enxergar ou não, agüentar ou ceder e a violência. Ou moral. Nudez da alma. A ausência de localidade e época específicas eterniza a amplitude narrativa, já que qualquer cidade regida pelas políticas e desigualdades pode servir de palco a esses contrastes gritantes. O autor faz um necessário convite à revisão de conceitos e uma nova consciência do ser humano enquanto cidadão do mundo. E se pensarmos no tarô como um conjunto indissolúvel, em que cada lâmina não é nada sozinha – e é tudo, por ironia simbólica –, podemos parafrasear com os protagonistas que, ao permanecerem juntos, experimentam momentos fraternos. Humanos de destinos incertos.



Retirantes - O Louco, o destino e os passos da rainha que tem olho.

Entre as suposições científicas sobre a causa da treva branca, está a agnosia (a-gnosis, perda do conhecimento), a deterioração da capacidade de reconhecer ou identificar pessoas, objetos, formas e símbolos a partir de um sentido físico – uma alteração intermediária entre as sensações e a observação, no caso. Já a amaurose, a perda parcial ou total da visão sem lesões no olho em si, apenas com afecções do nervo óptico ou mesmo dos centros nervosos, é cogitada durante a narrativa como a possível razão do fenômeno inesperado. Cor do leite. Essas trevas brancas que assombram os personagens iluminam suas percepções e a história acaba sendo não só num registro da sobrevivência física das multidões cegas, mas também de suas vidas espirituais e da dignidade que tentam manter. Mais do que olhar, importa reparar no outro. Só assim humanizam-se, ajustam-se.


Fiquemos em quarentena com as cartas. Eis o ensaio da vida, estampado no branco. A cegueira humana que carrega mil segredos e motivos a serem vistos por qualquer um e qualquer coisa. Branca, como a razão. Negra, como as sombras.
Vejamos o melhor e o pior de nós.
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Viu?
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Leo
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3 de setembro de 2008

NOTA DE PARABÉNS



FELIZ ANIVERSÁRIO,
CAFÉ TAROT !


Se o último ano foi bom, esse novo promete. Obrigado a todos por estarem sempre por aqui. Que cada letra e imagem sirva de inspiração ao estudo e à prática do tarô, a arte que espelha a vida. Vida longa!