Um enigma de ouro, sangue e paixão
Detalhe de “La Primavera” de Botticelli, 1482.
O momento dos amantes – Tarô Visconti-Sforza Pierpont Morgan-Bergamo.
Eis a cena do enlace entre Francesco Sforza e Bianca Maria Visconti – sugestão de Stuart Kaplan no primeiro volume de sua Enciclopédia do Tarô. Seria essa ligação de sangue o motivo do vermelho vivo? As casas, praças e palácios milaneses, lavados pelo fluido da vida numa mistura de duques, nobres e governantes. Mas talvez o que se nota é que se torna inadiável, interessante e importante a ser comentado. O Cupido, acima do casal, tem asas rubras. A esfera direita do seu cérebro parece exposto. Do órgão genital, a vermelhidão sugere sangue expelido. Ou vinho, o próprio sangue dos deuses, embriagando os prometidos quando mostro o Ás de Copas transbordando na minha imaginação. Ele não voa; prostra-se sobre um pedestal quase imperceptível. Fico sabendo, posteriormente, que seria uma fonte. Aquela tal da Eterna Juventude, ainda mais na cidade plena das mil e uma construções. Suas asas, então, encharcadas. Penso nesses ornamentos. Dedico-lhes certo tempo enquanto os leio, ouvindo o canto de Safo.
Francesco Sforza e Bianca Maria Viscont - pinturas atribuídas a Bonifácio Bembo, 1460.
Não dá para atribuí-los apenas à deterioração natural do trunfo. Kaplan explica que o revestimento de fundo poderia ser de um ouro inferior ao dos demais arcanos. Sei que tudo faz sentido nas páginas do tarô. Muita, muita atenção.
O anjinho vendado segura uma flecha em cada mão. “Pois bem”, eu me pergunto, “cadê o arco, Cupido?”. “Está com ela”, me responde assim que desviro, por impulso do acaso, a lâmina mais próxima – A Morte. Tânatos que acompanha Eros, óbvio. Se eu tenho o esqueleto junto à primeira carta, percebo que têm sido equivocadas as noções do amor ao pensar que ele permanece (ou que deveria permanecer a qualquer custo) igual para todo o sempre. Mas o amor só é autêntico quando dá liberdade, já que tudo é uma constante transformação - ainda mais quando ele vem de repente, sem qualquer esforço, como um presente natural. Se verdadeiro, não morre; transforma-se. Noção básica da ciência. E do coração, claro.
A Morte (Pierpont Morgan-Bergamo) e Os Enamorados (Cary-Yale).
Aqui o pano que antes cobria a visão do garoto-amor está preso à testa do crânio. A Inominável conhece seus alvos. Cada um tem sua hora e ela não perde a mira. Parei. Brinco de quebra-cabeça com os dois arcanos – um antes, o outro antes do primeiro – experimentando uma seqüência para possíveis epifanias arquetípicas. Sempre possíveis, sabemos todos.
O amor, a morte, AMORte, escolhas, morrer, escolher morrer... ESCOLHER MORRER?! “Amar é deixar-se matar”. Pronto, consegui. As duas divindades gregas desabrocham em conceito prático. Atuar com o arco é uma função nobre, um exercício de espírito. É a arte do cavalheiro, que garante a caça, envolve a pretendente. Sempre carregando um sentido masculino, a flecha penetra e fecunda o veneno, agindo como um raio – modifica aquilo que toca. Ouço sempre dizer no duplo caráter do querubim dos casais. Seria, o outro lado, uma força perniciosa que conduz à ruína, já que exerce poder sobre os homens, sobre a constituição e o curso do Mundo.
Leo
FONTES
Enciclopédia do Tarot - volumes I e II, de Stuart Kaplan.
Detalhe de “La Primavera” de Botticelli, 1482.
"Il vous aime, c'est secret, lui dites pas que j'vous l'ai dit..."
Carla Bruni
Carla Bruni
Domingo é dia de Café Tarot. Pra mim é todo dia, principalmente durante as tardes ensolaradas do interior paulista onde me permito longa folga, aproveitando o jardim e a cortina de heras próxima à mesa com xícara, arcanos e livros bem distribuídos. Após uma leitura com um cliente antigo, levo meu café até a boca, ergo uma carta do Visconti-Sforza, próximo da fumaça: Os Enamorados. “Um banho de sangue”, penso alto assim que termino o gole.
O momento dos amantes – Tarô Visconti-Sforza Pierpont Morgan-Bergamo.
Eis a cena do enlace entre Francesco Sforza e Bianca Maria Visconti – sugestão de Stuart Kaplan no primeiro volume de sua Enciclopédia do Tarô. Seria essa ligação de sangue o motivo do vermelho vivo? As casas, praças e palácios milaneses, lavados pelo fluido da vida numa mistura de duques, nobres e governantes. Mas talvez o que se nota é que se torna inadiável, interessante e importante a ser comentado. O Cupido, acima do casal, tem asas rubras. A esfera direita do seu cérebro parece exposto. Do órgão genital, a vermelhidão sugere sangue expelido. Ou vinho, o próprio sangue dos deuses, embriagando os prometidos quando mostro o Ás de Copas transbordando na minha imaginação. Ele não voa; prostra-se sobre um pedestal quase imperceptível. Fico sabendo, posteriormente, que seria uma fonte. Aquela tal da Eterna Juventude, ainda mais na cidade plena das mil e uma construções. Suas asas, então, encharcadas. Penso nesses ornamentos. Dedico-lhes certo tempo enquanto os leio, ouvindo o canto de Safo.
Francesco Sforza e Bianca Maria Viscont - pinturas atribuídas a Bonifácio Bembo, 1460.
Não dá para atribuí-los apenas à deterioração natural do trunfo. Kaplan explica que o revestimento de fundo poderia ser de um ouro inferior ao dos demais arcanos. Sei que tudo faz sentido nas páginas do tarô. Muita, muita atenção.
O anjinho vendado segura uma flecha em cada mão. “Pois bem”, eu me pergunto, “cadê o arco, Cupido?”. “Está com ela”, me responde assim que desviro, por impulso do acaso, a lâmina mais próxima – A Morte. Tânatos que acompanha Eros, óbvio. Se eu tenho o esqueleto junto à primeira carta, percebo que têm sido equivocadas as noções do amor ao pensar que ele permanece (ou que deveria permanecer a qualquer custo) igual para todo o sempre. Mas o amor só é autêntico quando dá liberdade, já que tudo é uma constante transformação - ainda mais quando ele vem de repente, sem qualquer esforço, como um presente natural. Se verdadeiro, não morre; transforma-se. Noção básica da ciência. E do coração, claro.
A Morte (Pierpont Morgan-Bergamo) e Os Enamorados (Cary-Yale).
Aqui o pano que antes cobria a visão do garoto-amor está preso à testa do crânio. A Inominável conhece seus alvos. Cada um tem sua hora e ela não perde a mira. Parei. Brinco de quebra-cabeça com os dois arcanos – um antes, o outro antes do primeiro – experimentando uma seqüência para possíveis epifanias arquetípicas. Sempre possíveis, sabemos todos.
O amor, a morte, AMORte, escolhas, morrer, escolher morrer... ESCOLHER MORRER?! “Amar é deixar-se matar”. Pronto, consegui. As duas divindades gregas desabrocham em conceito prático. Atuar com o arco é uma função nobre, um exercício de espírito. É a arte do cavalheiro, que garante a caça, envolve a pretendente. Sempre carregando um sentido masculino, a flecha penetra e fecunda o veneno, agindo como um raio – modifica aquilo que toca. Ouço sempre dizer no duplo caráter do querubim dos casais. Seria, o outro lado, uma força perniciosa que conduz à ruína, já que exerce poder sobre os homens, sobre a constituição e o curso do Mundo.
Lanças e flechas sem saber em quem – ofício do nosso Eros – é antecipar mentalmente a conquista de um bem fora do alcance. Arriscar, brincar com/no acaso. E quem sabe se ele não espia lá do alto, por uma brechinha do tecido? Ele é quem transtorna, desequilibra e invade o mortal. É a morte súbita, fulmina a vítima. Tanto as do Amor como a da Morte, as flechas atingem o alvo bem no meio. São certeiras, apesar de tudo. Com Ovídio aprendi sobre elas: “se forem de ouro, elas inflamarão o pretendente”. É assim no Visconti-Sforza. O arqueiro do amor e o arqueiro da morte guardam este segredo. Conversam e competem, será?
Cena do casamento em 1441 na Igreja de San Sigismondo, em Cremona.
Pertencente ao “Codice de Donazione”, 1464.
Não meço o tempo e puxo outra carta. Agora é o Luminoso que se mostra. Apollo, o deus arqueiro. Os relatos míticos garantem que suas flechas são do mais puro fluido da beleza, temperadas docemente em seu coração. Mas Apollo é também aquele que entrega a peste: para vingar honra de Crises, seu sacerdote, semeou a Morte no acampamento grego nas praias de Tróia. No Pierpont Morgan-Bergamo, temos o jovem sobre uma nuvem carregada, segurando o sol acima de seu corpo. É o rosto de Febo que reluz no tom ígneo. Do fogo, do sangue, da vida. E se for uma máscara? É uma possibilidade. O pequeno Eros, já que tem asas, faz o papel do deus. A encenação greco-romana dos sentimentos que rondam a cidade, lá embaixo. E então tomemos distância das banalizações sobre o Deus-Luz que o reduzem à figura de um belo rapaz eternizado em desgraças amorosas, ou então a uma simples oposição nietszcheana de Dioniso – nada de superficialidades agora. Apollo irradia vitória, domínio e entusiasmo pela vida. Casa a paixão e a razão: ilumina, conscientiza e transcende expectativas e desafios.
Posições semelhantes: Apollo arqueiro de 460 a.C. no Museu do Louvre e o Sol.
A moral desse enigma só pode ser esta: diante das escolhas ou mesmo das decisões do destino, morremos individualmente, já que o amor é encontro de vida e morte. Os amantes se deparam com o desejo de dissolver o “eu” e o “você” em uma unidade. Estão separados da própria origem e então caminham de volta para o todo. O desejo de voltar para casa, o próprio coração.
Cena do casamento em 1441 na Igreja de San Sigismondo, em Cremona.
Pertencente ao “Codice de Donazione”, 1464.
Não meço o tempo e puxo outra carta. Agora é o Luminoso que se mostra. Apollo, o deus arqueiro. Os relatos míticos garantem que suas flechas são do mais puro fluido da beleza, temperadas docemente em seu coração. Mas Apollo é também aquele que entrega a peste: para vingar honra de Crises, seu sacerdote, semeou a Morte no acampamento grego nas praias de Tróia. No Pierpont Morgan-Bergamo, temos o jovem sobre uma nuvem carregada, segurando o sol acima de seu corpo. É o rosto de Febo que reluz no tom ígneo. Do fogo, do sangue, da vida. E se for uma máscara? É uma possibilidade. O pequeno Eros, já que tem asas, faz o papel do deus. A encenação greco-romana dos sentimentos que rondam a cidade, lá embaixo. E então tomemos distância das banalizações sobre o Deus-Luz que o reduzem à figura de um belo rapaz eternizado em desgraças amorosas, ou então a uma simples oposição nietszcheana de Dioniso – nada de superficialidades agora. Apollo irradia vitória, domínio e entusiasmo pela vida. Casa a paixão e a razão: ilumina, conscientiza e transcende expectativas e desafios.
Posições semelhantes: Apollo arqueiro de 460 a.C. no Museu do Louvre e o Sol.
A moral desse enigma só pode ser esta: diante das escolhas ou mesmo das decisões do destino, morremos individualmente, já que o amor é encontro de vida e morte. Os amantes se deparam com o desejo de dissolver o “eu” e o “você” em uma unidade. Estão separados da própria origem e então caminham de volta para o todo. O desejo de voltar para casa, o próprio coração.
O Sol, portanto, chega para clarear a realidade e as necessidades afetivas. É a maturidade, a confiança, a nitidez, a entrega enquadrada e pintada no dourado. E qualquer um que tenha a audácia de afirmar que domina o baralho deve ao menos respeitar seus segredos e esforçar-se para traduzi-los sem pretensões. Deve deixar-se dominar por ele, como seus sucessores, clássicos e modernos. Deixar-se dominar pelo amor, no entanto, é uma conseqüência. Esteja o casal pronto ou não, ele morre, renascendo em união que ultrapassa os tempos. Concreto, lívido, presente. Como teria sido com o casal italiano. Em juramentos de sangue, em vinho, em ouro.
P.S.: AMOR que se mostra ao espelho: ROMA.
Embarco logo.
P.S.: AMOR que se mostra ao espelho: ROMA.
Embarco logo.
Leo
FONTES
Enciclopédia do Tarot - volumes I e II, de Stuart Kaplan.
Imagens: Google e Taroteca