Arte do autor com desenho de Arpad Szènes.
A vida é pura poesia. Custa acreditar nessa verdade. Incontestável, eu diria. Como a maioria das minhas leituras, a Antologia surgiu com o vento em uma tarde branca e gelada. Me envolveu como o silêncio, há mais de cinco anos.
Confesso que agora é impossível deixar de ver as estampas por entre as letras e versos – nem tento mais, desisti de qualquer separação. As cartas colorem os poemas. Analogias, lembranças, assimilações. A crônica do homem em lâminas de papel. E aqui, nas crônicas da viajante, da poeta. Sim, os arcanos também estão em Pessoa, em Lispector, em Suassuna. Mas em Meireles, eles circundam cada elemento, estão presentes em toda tentativa (e êxito) de captação poética da realidade, do encantamento, dos sonhos e da Beleza – essa compreensão superior da vida.
Prefere ser chamada de poeta por rimar com sua verdade: “completa”. Viaja pela história dos países, evoca sabores, cheiros e aromas pelas palavras e imagens. É simbolista por natureza – e pela natureza – das coisas, da vida. Como aqueles que brincam com mistérios embaralhados e viram xícaras de café durante manhãs e tardes, rodeados de bucolismo, de paganismo, de atualidades.
“Cecília Meireles no Tarô” – arte do autor baseada na pintura de Vieira da Silva.
Pois se falamos das coisas da vida, falemos então das suas cartas. O Louco* sopra ao seu ouvido por debaixo dos esboços e canetas. Os arcanos falam, saiba você. Cecília é um arcano sem número – não é turista, mas viajante. Andarilha do mundo, quer morar em cada coisa, descer à origem de tudo. Amar (loucamente, claro) cada aspecto do caminho, desde as pedras mais toscas do penhasco às mais sublimadas almas do passado, do presente a até do futuro. Estes três, aliás, são as engrenagens mais conhecidas do tarô. A trindade da existência. Por certo, Cecília escolhe a lâmina do meio: “O presente abarca tudo: o presente, e só ele, abarca tudo. Tempo é estar sendo. Não há passado/ nem futuro./ Tudo que abarco se faz presente.”
O Mago (Ancient Italian Tarot)
E invoca, portanto, O Mago. Com ele descobre o dom das palavras. Pode escrever qualquer coisa – serena, isenta e fiel. Reúne as multidões; encanta-as. Abre o mundo por mil portas simultâneas. Pára o tempo. Conquista-nos pelo sereno contato e se admira com o tempo humano por sua grandeza e precariedade.
A Sacerdotisa (Thoth Tarot)
A Sacerdotisa é a menina translúcida, ela própria. “Um rosto na noite larga/ de altas insônias/ iluminada.” Seus ouvidos são como conchas sonoras: música perdida nos pensamentos, na espuma da vida, na areia das horas. Flutua entre algas e peixes a noite inteira. Escuta essas almas, que são de todos os afogados. O segundo arcano maior reflete – como espelho d´água – a efusão amorosa, a profunda identificação da poeta com a ambiência física e espiritual. Revela cânticos – sua aspiração à eternidade, inspirada pela realidade. Surge a Vênus na minha cabeça.
A Imperatriz (DruidCraft Tarot)
Não há eternidade sem vidamorte. Entre elas, claro, o amor. Eis que tira do leque A Imperatriz. Então as árvores aparecem com flores e frutos e aqui está a vida – seu retrato natural. Uma flor de vez em quando/ no ramo aberto. À beira d´água mora e a flor nas águas solta. “E uma pequena brisa cálida/ flutua sobre as árvores da aldeia/ como o sonho de um pássaro”. E aqui estão seus olhos nas flores, seus braços ao longo destes mesmos ramos. É a mãe, a mulher, a poesia. Eis a própria Beleza.
_______
O Hierofante (Secret Tarot)
Belas são as lembranças que O Hierofante lhe traz. Fé, religiosidade, Índia, Tagore e Gandhi. Fundamentais as influências do Oriente em Meireles. Fala-se da tessitura de sensações aliada ao tempo, ao sonho. “Refazer com imaginação todas as coisas que acontecem por estes lugares”, sentir o que está guardado dentro dos nomes das cidades e vilarejos. Suas línguas, suas heranças espirituais. Diáfanas e esquecidas, eternizadas pelas imagens que as letras transcrevem. Sua religião é Deus em poesia. “Para além de hoje e outrora,/ veremos os Reis ocultos/ senhores da Vida toda,/ em cuja etérea cidade/ fomos lágrima e saudade/ por seus nomes e seus vultos.” É em seu Romanceiro, aliás, que ela suplica aos santos. É em vida que lhes dedica pequenos oratórios. “Com as mãos no altar, o acender luzes/ pés na fria pedra.” É Clara a sua luz.
O Carro (Minchiate Tarot)
E são d´O Carro, agora, as próximas idéias e sentimentos da viajante imaginativa. Com um veículo em perfeitas condições e estradas bem sinalizadas, pode-se ir até o fim do mundo sem se perguntar nada aos outros. A certeza e o silêncio. A liberdade, palavra que não há quem não entenda. Ela observa e sente as carruagens, as gôndolas, os barcos e bicicletas que passam. Veículos que demoram a chegar ao seu destino – e assim alongam-se as direções e os horizontes, perfuram-se dicionários, procura-se raízes, descobre-se mundos históricos, filosóficos, religiosos e poéticos. De igrejas, deuses, reis, imperadores, santos e anjos que lhe acenam quando, por acaso, não estão entretidos uns com os outros em fábulas, evangelhos, poemas e hinos celestiais. Não há sossego para a viajante, que questiona a si própria: “Cavalo e cocheiro, tu e eu: estaríamos acordados ou dormindo? Vivos ou mortos? E quem éramos, com certeza, fora do nosso nome, do nosso passaporte, das relações que ao longe conversávamos – tão longe, além de tantos mares e montanhas...?” Questiona mas aceita, pois essa é a sua meditação. Deixa que ele a leve por onde quiser. Ele também é um artista. "Como não há de ser artista um homem habituado a conduzir o seu carro - ofício, aliás, de Apolo - por entre vetustos palácios, ao longo de velhas ruínas, com o presente misturado a um passado de glórias e derrotas, conhecendo (a seu modo) imperadores e santos...?" A poeta conhece as cartas.
O Eremita (Haindl Tarot).
Então chega um momento em que ela quer solidão. Viaja sozinha com o coração, por isso a carta agora é O Eremita. Ela se desencontra, leva o rumo na mão. Mas e a memória, o amor e o resto, onde estarão? Este é o Arcano-Tempo. “A memória voou de minha fronte./ Voou meu amor, minha imaginação”. Seu ermitão vem de dentro – “Era um homem tão antigo/que parecia imortal. Tão pobre/ que parecia divino”. Tempo escasso, mas “inventado/ sonhado,/ mas vivo, existente.” Testemunha passageira, como um transeunte da alma. Sua própria infância de menina, aliás, deram-lhe essas duas coisas positivas: “silêncio e solidão. Essa foi sempre a área de minha vida”. Área mágica em que os relógios lhe revelam o segredo de seu mecanismo. Mas seu destino é ir mais longe que a própria solidão. Tão longe quanto a própria alma, onde se pode ser livre e isento. Atos além do sonho.
Por isso deve haver o descanso. O leque não será fechado até que a poeta alcance mais cartas-chave. Há muito a escrever e sobre muitos relatar em linhas tomadas de plenitude.
“No baralho bate o vento
e o jogo segue outras voltas.”
_
_
_
Leo
___
_____
____
_
_______
*RAMO DE CARTAS
Clique aqui para ler um poema de Cecília à luz do arcano O Louco
______
_______
______
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MEIRELES, Cecília. Antologia Poética. Editora Nova Fronteira, 2001.
MEIRELES, Cecília. Crônicas de Viagem 2. Editora Nova Fronteira, 1999.
______
_______
______IMAGENS
Google Imagens - http://www.google.com.br/
______
_______
______