23 de dezembro de 2007

O TARÔ EM PESSOA

INTERPRETANDO A MENSAGEM DO GRANDE POETA PORTUGUÊS

Arte nas ruas de Lisboa, por Jef Aerosol
http://www.flickr.com/photos/jefaerosol/

Fernando Pessoa é místico por natureza. Também por palavras, por astros e por heterônimos que lhe desdobram em mil e expressam vidas exclusivas, exatamente como lâminas de um baralho. Atuam e interferem umas nas outras oferecendo destinos, orientações e outros símbolos. Mais e mais símbolos, cada vez mais.

Geminiano, dedicou-se ao estudo da filosofia clássica e contemporânea, sofrendo influências de Baudelaire e do movimento simbolista assim que começou a escrever. Seus estudos de ocultismo englobam toda a sua obra. Caminho mágico, caminho alquímico. Transmutações da própria personalidade. Como astrólogo, introduziu Plutão às cartas. Daí o caráter revolucionário, influência direta do planeta – desbravador de novos mares, tanto os literários e lingüísticos quanto os esotéricos e pessoais. Ou melhor, "pessoanos".

Capa da Revista Orpheu e matéria publicada em 1928.

Modernista, investe palavras na Orpheu, uma publicação pra lá de curiosa para quem tem os olhos atentos de cartomante. Na ilustração de capa da primeira edição, assinada por José Pacheco, vê-se uma mulher entre duas velas, como se fossem pilares – nítida associação com a Sacerdotisa do tarô, a Senhora dos Mistérios que, em “O Último Sortilégio” da obra ortônima “Cancioneiro”, marca presença nos versos de uma iniciada. Eles descrevem práticas de magia ritualística, um assunto que Pessoa dominava muito bem.


Crowley & Pessoa
Jésuz Fernández Jiménez
http://www.jjfez.com/

Aliás, a amizade com Aleister Crowley não pode deixar de ser mencionada. Entre mapas, nevoeiros e auroras douradas, o encontro em Lisboa foi bem mais que obscuro. Fico aqui pensando que "Psiquetipia" foi escrito logo depois de ter conhecido e analisado não só os dados astrológicos mas também os modos e os arcanos nas mãos do mago, mesmo que assinado pela pena de Álvaro de Campos. Pense nas próprias lâminas e leia o trecho.

“Conversa perfeitamente natural... Mas e os símbolos?
Não tiro os olhos de tuas mãos... Quem são elas?
Meu deus. Os símbolos... Os símbolos...”


Pois é, sempre me questionei: “qual teria sido o contato de Pessoa com o tarô? Como, aliás, perceber os arcanos em uma obra tão vasta, tão interrogativa e enigmática?” Bem, a resposta estava na própria pergunta. O tarô é um enigma se pensarmos em sua trajetória histórica, esotérica, simbólica. O poder das imagens que se tornam palavras. Palavras que traduzem imagens. Próprias. Íntimas. Secretas.

Então, se penso nos símbolos, sigo as pistas. Afinal, “tudo são símbolos”. Reparo, então, na famosa anotação que antecede o livro "Mensagem", escrita especificamente para decifrar o conteúdo da obra, recheada de sinais divinos e patriotas. Na verdade, este documento parece ter sido escrito especificamente para os profissionais e estudantes dos arcanos. Longe, então, das intenções sebastianistas e nacionalistas que o autor propôs ao seu estudo, a nota se torna um exercício de interpretação ou mesmo um manifesto que contribui à codificação das cartas e à compreensão do caráter essencialmente polissêmico de seus símbolos. Um documento valiosíssimo que merece atenção, pois infalivelmente contribui para a jornada individual do estudante.


NOTA PRELIMINAR
Apontamento de FP, s.d.; não assinado.


Biratan
http://www.biratan.com.br


“O entendimento dos símbolos e dos rituais (simbólicos) exige do intérprete – o tarólogo – que possua cinco qualidades ou condições, sem as quais serão, para ele, mortos, e ele um morto para eles. A primeira é a simpatia, em grau de simplicidade e conformidade com as citações. Tem o intérprete que sentir simpatia pelo símbolo que se propõe interpretar. Nesse quesito se enquadra a escolha adequada do baralho, a plenitude e sinceridade do desejo de optar pelas imagens a que se propõe a analisar. A atitude cauta, a irônica, a deslocada – todas elas privam o intérprete da primeira condição para poder interpretar. Cabe aqui a postura de respeito e fidelidade aos arcanos e à prática oracular. Somente pela verdadeira vontade e por constantes e sérios estudos é que as imagens passam a fluir na alma e no cotidiano do indivíduo disposto.


A segunda é a intuição. A simpatia pode auxiliá-la, se ela já existe, porém não criá-la. A dedicação autêntica e continuada das análises promove insights, aberturas mentais e emocionais a outros níveis de interpretação e de capacidade narrativa, mas não nasce repentinamente; quando plantada, exige cultivo e cada arcano espalhado sobre a superfície de leitura. Por intuição se entende aquela espécie de entendimento em que s sente o que está além do símbolo, sem que se veja. Noções diversas sobre diversas situações, explicações e captações lingüísticas por meio da arte – eis a finalidade desta condição. Há de se tomar cuidado com projeções que se jogam ao olho mental, iludindo os menos e os muito preparados.

Heterônimos de Pessoa por Almada Negreiros,
Faculdade de Letras de Lisboa.

A terceira é a inteligência. A inteligência analista decompõe, ordena, constrói noutro nível o símbolo; tem, porém, que fazê-lo depois que se usou da simpatia e da intuição. Essa é a premissa básica para estabelecer associações entre as cartas e a cultura, a realidade palpável, às paisagens, aos fatos históricos e até aos imaginários. A inteligência arcana se traduz em criatividade lúdica, representativa e inovadora de quaisquer elementos que se queira abordar simbolicamente. Um dos fins da inteligência, no exame dos símbolos, é o de relacionar no alto o que está de acordo com a relação que está embaixo – o próprio ofício d´O Mago. Não poderá fazer isto se a simpatia não tiver lembrado essa relação, se a intuição a não estiver estabelecido. Então a inteligência, de discursiva que naturalmente é, se tornará analógica, e o símbolo poderá ser interpretado. Eis então o próprio ofício do leitor, que deve aproximar, com estilo, a vida estática das estampas às horas da vida material, sentimental e espiritual para extrair lições e orientações quando solicitadas.


“O MAGO POETA”, arte do autor
a partir da pintura de Almada Negreiros, de 1954.

A quarta é a compreensão, entendendo por esta palavra o conhecimento de outras matérias, que permitam que o símbolo seja iluminado por várias luzes, relacionado com vários outros símbolos, pois que, no fundo, é tudo o mesmo. O poder da analogia e da convergência entre disciplinas, conceitos e sistemas diferentes. Alude ao estudo interdisciplinar ao qual o tarô é sujeito, já que trabalha a interdependência simbólica e a evolução de significados sem alterar, diretamente, o fenômeno analisado. Não direi a erudição, como poderia ter dito, pois a erudição é uma soma; nem direi cultura, pois a cultura é uma síntese, e a compreensão é uma vida. Compreender o tarô demanda tempo e maturidade. Exige dedicação e uma determinada carga cultural do estudante, que passará a assimilar emoções, desejos e impressões às cartas após a análise descompromissada das mesmas. A compreensão se dá pela ingenuidade visual, ao olhá-las livres de qualquer significado imposto pela experiência alheia. Aliás, seriam elas uma síntese do mundo? Seriam potenciais, tendências da realidade através dos tempos? Ou então a memória do divino universo da alma? São questões precisas que promovem respostas individuais e coletivas. Assim, certos símbolos não podem ser bem entendidos se não houve antes, ou ao mesmo tempo, o entendimento de símbolos diferentes. Daí a importância dos estudos de literatura, filosofia, de religiões e de história da arte e do mundo. Para que os arcanos sejam “inteiros” nas mãos leigas, faz-se necessária a longa jornada de pesquisa – das origens de tais signos e significantes, de suas migrações e transformações ao longo dos séculos e das diferentes concepções artísticas. Esta quarta condição, que acaba sendo rara e verdadeira qualidade, apenas se torna nítida com o passar do tempo, quando desenvolvida e concretizada a intimidade e o gosto por deitar as lâminas. Exige, portanto, coerência e visão global. É a interpretação da vida. A compreensão dos mecanismos que sustentam o espírito do universo – sobretudo o humano.


A quinta é a menos definível. Direi talvez, falando a uns, que é a graça, falando a outros, que é a mão do Superior Incógnito, falando a terceiros, que é o Conhecimento e Conversação do Santo Anjo da Guarda, entendendo cada uma destas coisas, que são a mesma da maneira como as entendem aqueles que delas usam, falando ou escrevendo.” Menos definível porque, como a Beleza, insinua-se para poucos; apenas para as almas despertas. Menos definível pois só é constatada quando se joga e quando se escreve. É a transcendência do tarô. O dom de manipular as palavras – escritas e faladas que nascem da observação das cenas ilustradas em cada peça. Augúrios e presságios que são sussurrados e afloram no tempo certo. Qualidade de quem decodifica seus símbolos mais íntimos e os respeita. Como cartas. Como vidas. Como divindades. Como magia. Como profissão. A própria adivinhação e as revelações que indicam o norte ao consulente. Rotas de orientação que quando contempladas, oferecem conselhos e escolhas. Ferramenta do destino, alegoria da imaginação.

Símbolos. Pessoas.
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REFERÊNCIAS E RECOMENDAÇÕES
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LIVROS
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Pessoa, Fernando. Mensagem. Coleção A Obra-Prima de Cada Autor.
Editora Martin Claret, São Paulo, 2007
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Pessoa, Fernando. Poesias Ocultistas, 2ª edição.
Editora Aquariana, São Paulo, 1996.
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SITES
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Artigo de Izabel Margato, disponível na Cátedra/PUC-Rio.
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Imagens sem legenda encontradas no deviantArt ou no Google Imagens.
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Boa parte da obra poética de Fernando Pessoa pode ser degustada na Revista Agulha.
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22 de novembro de 2007

SÃO PAULO - RETA FINAL DA TURNÊ 2007

Tem sido um vai-e-volta tremendo. Estudo bastante, trabalho um pouco e lá estou eu de novo, nos metrôs e calçadas da Paulista. Festa, vinhos, risos e pratos que compõem meu mosaico particular de viagem.

Gostei das cenas dramáticas de Marion Cotillard no HSBC Belas Artes, que já nos deliciou com sua atuação em "Um Bom Ano" e "Eterno Amor". "La Môme" é indispensável, até porque as cartas estão presentes - a preocupação de Edith Piaf quanto ao seu amado Marcell diante da melhor cartomante de Paris. Conhece aquela "No Je Ne Regrette Riem"? Não me sai mais da cabeça.

Sim, eu recomendo os dois.

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Ah, uma pausa para o sagrado café da tarde, claro. Com qual arcano se parece a pequena sereia do Starbucks? Só sei que é inspirada em Melville.
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Yes, já chegou na terrinha.

Já me acostumei com panfletos, ingressos, bilhetes, passagens, moedas, livretos e catálogos que se alojam em minha mochila. Não esqueci de pedir marcadores de páginas depois de alguns quilos de livros que fui garimpando na Cultura do Conjunto Nacional. Até mesmo um prateado tarô de Mantegna me escolheu!


E uma peça do mosaico.
Bom, valeu a pena também o "1408" com John Cusack, íntimo d´A Morte. É claro que só podia ter dedo de Stephen King no meio. Ou melhor, no início. Mas no fim, percebi que sempre me delicio com a rotina gastronômica do meu ristorante favorito da Pompéia. Tudo me chama de volta. Sou grato por isso.
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Pois então, Jodorowsky vem aí. Melhor correr.
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Volto logo, viu?
Mesmo.
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Leo

28 de outubro de 2007

CARTAS À PASTORA DE NUVENS


Arte do autor com desenho de Arpad Szènes.

A vida é pura poesia. Custa acreditar nessa verdade. Incontestável, eu diria. Como a maioria das minhas leituras, a Antologia surgiu com o vento em uma tarde branca e gelada. Me envolveu como o silêncio, há mais de cinco anos.

Confesso que agora é impossível deixar de ver as estampas por entre as letras e versos – nem tento mais, desisti de qualquer separação. As cartas colorem os poemas. Analogias, lembranças, assimilações. A crônica do homem em lâminas de papel. E aqui, nas crônicas da viajante, da poeta. Sim, os arcanos também estão em Pessoa, em Lispector, em Suassuna. Mas em Meireles, eles circundam cada elemento, estão presentes em toda tentativa (e êxito) de captação poética da realidade, do encantamento, dos sonhos e da Beleza – essa compreensão superior da vida.

Prefere ser chamada de poeta por rimar com sua verdade: “completa”. Viaja pela história dos países, evoca sabores, cheiros e aromas pelas palavras e imagens. É simbolista por natureza – e pela natureza – das coisas, da vida. Como aqueles que brincam com mistérios embaralhados e viram xícaras de café durante manhãs e tardes, rodeados de bucolismo, de paganismo, de atualidades.

Cecília Meireles no Tarô” – arte do autor baseada na pintura de Vieira da Silva.

Pois se falamos das coisas da vida, falemos então das suas cartas. O Louco* sopra ao seu ouvido por debaixo dos esboços e canetas. Os arcanos falam, saiba você. Cecília é um arcano sem número – não é turista, mas viajante. Andarilha do mundo, quer morar em cada coisa, descer à origem de tudo. Amar (loucamente, claro) cada aspecto do caminho, desde as pedras mais toscas do penhasco às mais sublimadas almas do passado, do presente a até do futuro. Estes três, aliás, são as engrenagens mais conhecidas do tarô. A trindade da existência. Por certo, Cecília escolhe a lâmina do meio: O presente abarca tudo: o presente, e só ele, abarca tudo. Tempo é estar sendo. Não há passado/ nem futuro./ Tudo que abarco se faz presente.”

O Mago (Ancient Italian Tarot)

E invoca, portanto, O Mago. Com ele descobre o dom das palavras. Pode escrever qualquer coisa – serena, isenta e fiel. Reúne as multidões; encanta-as. Abre o mundo por mil portas simultâneas. Pára o tempo. Conquista-nos pelo sereno contato e se admira com o tempo humano por sua grandeza e precariedade.


A Sacerdotisa (Thoth Tarot)

A Sacerdotisa é a menina translúcida, ela própria. “Um rosto na noite larga/ de altas insônias/ iluminada.” Seus ouvidos são como conchas sonoras: música perdida nos pensamentos, na espuma da vida, na areia das horas. Flutua entre algas e peixes a noite inteira. Escuta essas almas, que são de todos os afogados. O segundo arcano maior reflete – como espelho d´água – a efusão amorosa, a profunda identificação da poeta com a ambiência física e espiritual. Revela cânticos – sua aspiração à eternidade, inspirada pela realidade. Surge a Vênus na minha cabeça.

A Imperatriz (DruidCraft Tarot)

Não há eternidade sem vidamorte. Entre elas, claro, o amor. Eis que tira do leque A Imperatriz. Então as árvores aparecem com flores e frutos e aqui está a vida – seu retrato natural. Uma flor de vez em quando/ no ramo aberto. À beira d´água mora e a flor nas águas solta. “E uma pequena brisa cálida/ flutua sobre as árvores da aldeia/ como o sonho de um pássaro”. E aqui estão seus olhos nas flores, seus braços ao longo destes mesmos ramos. É a mãe, a mulher, a poesia. Eis a própria Beleza.
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O Hierofante (Secret Tarot)

Belas são as lembranças que O Hierofante lhe traz. Fé, religiosidade, Índia, Tagore e Gandhi. Fundamentais as influências do Oriente em Meireles. Fala-se da tessitura de sensações aliada ao tempo, ao sonho. “Refazer com imaginação todas as coisas que acontecem por estes lugares”, sentir o que está guardado dentro dos nomes das cidades e vilarejos. Suas línguas, suas heranças espirituais. Diáfanas e esquecidas, eternizadas pelas imagens que as letras transcrevem. Sua religião é Deus em poesia. “Para além de hoje e outrora,/ veremos os Reis ocultos/ senhores da Vida toda,/ em cuja etérea cidade/ fomos lágrima e saudade/ por seus nomes e seus vultos.” É em seu Romanceiro, aliás, que ela suplica aos santos. É em vida que lhes dedica pequenos oratórios. “Com as mãos no altar, o acender luzes/ pés na fria pedra.” É Clara a sua luz.

O Carro (Minchiate Tarot)

E são d´O Carro, agora, as próximas idéias e sentimentos da viajante imaginativa. Com um veículo em perfeitas condições e estradas bem sinalizadas, pode-se ir até o fim do mundo sem se perguntar nada aos outros. A certeza e o silêncio. A liberdade, palavra que não há quem não entenda. Ela observa e sente as carruagens, as gôndolas, os barcos e bicicletas que passam. Veículos que demoram a chegar ao seu destino – e assim alongam-se as direções e os horizontes, perfuram-se dicionários, procura-se raízes, descobre-se mundos históricos, filosóficos, religiosos e poéticos. De igrejas, deuses, reis, imperadores, santos e anjos que lhe acenam quando, por acaso, não estão entretidos uns com os outros em fábulas, evangelhos, poemas e hinos celestiais. Não há sossego para a viajante, que questiona a si própria: “Cavalo e cocheiro, tu e eu: estaríamos acordados ou dormindo? Vivos ou mortos? E quem éramos, com certeza, fora do nosso nome, do nosso passaporte, das relações que ao longe conversávamos – tão longe, além de tantos mares e montanhas...?” Questiona mas aceita, pois essa é a sua meditação. Deixa que ele a leve por onde quiser. Ele também é um artista. "Como não há de ser artista um homem habituado a conduzir o seu carro - ofício, aliás, de Apolo - por entre vetustos palácios, ao longo de velhas ruínas, com o presente misturado a um passado de glórias e derrotas, conhecendo (a seu modo) imperadores e santos...?" A poeta conhece as cartas.

O Eremita (Haindl Tarot).

Então chega um momento em que ela quer solidão. Viaja sozinha com o coração, por isso a carta agora é O Eremita. Ela se desencontra, leva o rumo na mão. Mas e a memória, o amor e o resto, onde estarão? Este é o Arcano-Tempo. “A memória voou de minha fronte./ Voou meu amor, minha imaginação”. Seu ermitão vem de dentro – “Era um homem tão antigo/que parecia imortal. Tão pobre/ que parecia divino”. Tempo escasso, mas “inventado/ sonhado,/ mas vivo, existente.” Testemunha passageira, como um transeunte da alma. Sua própria infância de menina, aliás, deram-lhe essas duas coisas positivas: “silêncio e solidão. Essa foi sempre a área de minha vida”. Área mágica em que os relógios lhe revelam o segredo de seu mecanismo. Mas seu destino é ir mais longe que a própria solidão. Tão longe quanto a própria alma, onde se pode ser livre e isento. Atos além do sonho.

Por isso deve haver o descanso. O leque não será fechado até que a poeta alcance mais cartas-chave. Há muito a escrever e sobre muitos relatar em linhas tomadas de plenitude.



“No baralho bate o vento
e o jogo segue outras voltas.”


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Leo

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*RAMO DE CARTAS
Clique aqui para ler um poema de Cecília à luz do arcano O Louco
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MEIRELES, Cecília. Antologia Poética. Editora Nova Fronteira, 2001.
MEIRELES, Cecília. Crônicas de Viagem 2. Editora Nova Fronteira, 1999.


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IMAGENS
Google Imagens - http://www.google.com.br/
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2 de outubro de 2007

OS ANIMAIS DE PODER NAS CARTAS DE TARÔ


Susan Seddon Boulet em SHAMAN - 2007 Calendar
Pomegranate Communications, EUA

Eles estão por toda parte. Nas artes, nas histórias, nas religiões e, sobretudo, dentro de nós mesmos. Como arquétipos, representam as camadas profundas do inconsciente e do instinto. Forças cósmicas, materiais e espirituais. O termo "animal", do latim anima, tem o sentido de fôlego vital, conjunto de energias profundas que nos dão a vida.

O tarô, enquanto sistema vivo de energia derivado do acervo coletivo da humanidade, agrega seres de todos os tempos em suas antigas e eternas imagens. Se o considerarmos uma teia de relações biológicas, sociais e até mesmo espirituais, podemos perceber que nele está inserida até mesmo a interação entre nós e os animais. É um instrumento de socialização, uma verdadeira ferramenta de religação com a Terra por meio de infindáveis associações simbólicas com a biodiversidade, com Gaia.



Quer saber mais?
Então leia o artigo na íntegra em TRIBOS DE GAIA,
na minha coluna de estréia.



Grato aos administradores e leitores.

Abraços,


L.

3 de setembro de 2007

UMA CARTA DE ANIVERSÁRIO

Há exatamente um ano surgia o Café Tarot.
Obrigado aos amigos e profissionais pela inspiração inicial, aos que lêem, interagem, discordam e sempre me escrevem e aos consulentes, todos companheiros de jornada que degustam o blog desde o seu nascimento.
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Agradeço ainda aos que destilam críticas infundadas por motivarem, inconscientemente, o aprimoramento de cada postagem, sabendo que o profissionalismo, o respeito e a autenticidade são os mais eficazes antídotos.
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E também aos visitantes de Portugal, Itália, Estados Unidos e Japão.
Muito, muito grato. Vida Longa! Aguardem as novidades.
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A Apollo,
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Leo

25 de agosto de 2007

TARÔ & CINEMA




Audrey Tautou é Amélie Poulain.

Le Fabuleux Destin d´Amélie Poulain, filme francês produzido por Jean Pierre Jeunet em 2002, foi um sucesso inesperado na França. A história da garota surpreendeu a produção e o mundo, tornando a personagem principal um ícone da cultura pop. Camisetas, zines, comunidades no orkut, febre e ideologia entre designers gráficos, livres-pensadores, estudantes de Letras, escritores de cartas, fãs de filmes alternativos e até adeptos do kitsch, mesmo que inconscientemente. Ah, claro, e muito bem vindo entre os lúdicos, aqueles que gostam de jogos de figuras. Sim, exatamente como você e eu.

Como o próprio nome do filme sugere, o grande segredo é perceber o destino de Amélie se desvelando em cada cena, uma vez que os minutos iniciais enfatizam a infância de uma garotinha estranha, com doenças cardíacas imaginadas pelos pais. Quieta e reclusa em um mundo de imaginação e brincadeiras solitárias, Amélie dá margem à curiosidade de saber qual é o diferencial da personagem e o que faz de significativo e inovador durante o filme, durante a vida.



Amélie não é uma garota comum, apesar das brincadeiras. Ela mexe com os hábitos, conhece-os bem. Detalhista, vive cada momento. É meditativa, quieta e observadora. A eterna menina cuja inocência é séria e o romance que vive é antigo. Repleto de imaginação, de surpresas e desejos. Mundinhos particulares. Cachalote, seu peixe de estimação, era neurastênico e vez ou outra tentava suicídio. Uma criança com um peixe? Associação simbólica com o Pajem de Copas, certeira. A realidade a assusta, principalmente quando pensou que cada clique de sua Kodak causava acidentes ao redor do mundo. É dentro de casa, aliás, que os arcanos começam a aparecer. Na infância, Amélie vivia isolada das pessoas. Raphael Poulain, ex-médico militar e pai às vezes, só se aproximava quando era preciso fazer exames nela. Rei de Espadas puro.



O ator Rufus como Raphael Poulain – lábios contraídos: sinal de falta de coração.

Para completar a família, Amandine, sua mãe, tinha colapsos nervosos que só uma morte trágica nos portões da igreja iria deixá-la em paz: uma turista canadense se joga do topo do templo e cai em cima dela. Uma Torre para uma Rainha de Gládios.


Lorella Cravotta é Amandine Poulain (Fouet, em solteira) – tique nervoso: sinal de perturbação neurótica.
Os anos passam – Amélie prefere sonhar até ter idade para partir”. Sai do subúrbio e passa a trabalhar como garçonete numa cafeteria em Montmartre, o famoso Café Le Deux Moulins – hoje um dos pontos turísticos de Paris. Amélie gosta de procurar detalhes que ninguém vê. Não gosta de namorar, mesmo que cultive um gosto particular pelos pequenos prazeres, como:


Enfiar a mão bem fundo no saco de cereais;


Quebrar a cobertura do crème brulée com a colher;


E jogar pedras no canal Saint Martin.

Aliás, desde nova Amélie mantém contato com a água. Só o começo das analogias com o personagem mais novo da corte de Copas. Arrisco semelhanças físicas, até.



Falar em Pajem do tarô é o mesmo que falar em Princesa, a nova concepção do arcano a partir da “correção” do oráculo, segundo alguns artistas. Aqui se encaixa apenas uma noção de temporalidade à história, que se passa entre agosto e setembro de 97 – Lady Di morre na França.



Não, não é coincidência e muito menos uma troca de princesas da minha parte. O acidente serve apenas para situar a história na realidade. Mas claro, é a presença da própria Morte mexendo nas entranhas do acaso.



Em seu antigo apartamento, Amélie assiste à notícia pela TV. Perplexa, uma ironia do destino acarreta os próximos acontecimentos: encontra uma velha lata escondida em um buraco na parede do banheiro e descobre que as relíquias guardadas pertenciam a um ex-morador. Ao abrir, lembranças que nem eram dela pulam à sua frente. Amélie decide encontrar o dono, um tal de Dominique Bredoteau.

BreTodeu, e não BreDoteau. – o destino de Amélie começa a mudar quando conhece seu vizinho Raymond Dufayel, l’homme de verre. Com a ajuda do Eremita em pessoa, consegue devolver as preciosas memórias de infância de Bredoteau. Digo, BreTodeau.


Serge Merlin como Raymond Dufayel e o Eremita de Marselha.


Maurice Bénichou como Dominique Bretodeau. Comovida com a felicidade do homem, Amélie encontra um sentido para sua vida: ajudar as pessoas ao seu redor a partir de pequenos gestos, muitas vezes criativos e incomuns. Destaque para as descrições do cenário enquanto acompanha o homem cego pela rua, momento em que ela o faz enxergar, iluminar-se por um momento. Foi quando procurava referências sobre o antigo inquilino do apartamento que acabou conhecendo uma outra vizinha: Madeleine Wallace. Viúva, ela vive com seu gato e com o querido Leão Preto, um velho cão empalhado, há 40 anos sem receber notícias de seu marido desaparecido durante uma expedição. Bom, dizem mesmo é que ele havia fugido com a secretária.



Yolande Moreau como Madeleine Wallace e a Sacerdotisa de Marselha.

Seu nome lembra a própria Madalena e o sobrenome, as fontes Wallace da França: literalmente destinada às lágrimas, assegura a concierge. É a Sacerdotisa da história, claro. Amélie banca a boa samaritana e dá um jeito de escrever e enviar uma carta do falecido marido, se desculpando pela ausência e declarando, com todas as letras, que a amaria sempre. Milagre do Cupido. Ou uma tática da princesa Poulain.

A Rainha dos Enjeitados, portanto, acaba descobrindo que ainda lhe falta algo que lhe impede de se sentir feliz: um amor de verdade, alguém para jantar, um homem para dormir em seus ombros. Durante sua jornada secreta, acaba conhecendo Nino Quincapoix – o amor à primeira vista.


O Pajem de Copas do New Vision Tarot contrastando com os pés de Amélie.
E Matthew Kossavitz, como Nino Quincapoix
Nino foi também um garoto solitário, a chacota da escola. Chegou a colecionar pegadas no cimento fresco quando era guarda noturno. Agora trabalha num sex-shop e no trem-fantasma do parque de diversões. Também é sensível, imaginativo, quieto e até romântico. Um de seus prazeres é manter um grande álbum recheado de fotografias 3x4, todas encontradas no lixo ou embaixo da máquina instantânea da rodoviária. O grande enigma de sua coleção é o retrato de um homem que aparece sempre em todas as lixeiras, ocupando bastante espaço na preciosa galeria. Sem que se dê conta, ele está prestes a descobrir o amor.



A princesa de Copas torna-se amiga do homem de vidro. Ele tem pintado, nos últimos 20 anos, um quadro por primavera. O da vez é o "Almoço dos Barqueiros", em típicas pinceladas de Renoir. "O mais difícil são os olhares", confessa o artista. Aliás, o único que ele não consegue captar é o da moça com o copo d´água - referência direta ao arcano de Copas, a pura personificação de Amélie e seus sentimentos intocados. Ela está no centro e, no entanto, está fora. "Talvez seja diferente dos outros", justifica a garota, fazendo-o pensar. "Quando era pequena não devia brincar muito com outras crianças. Talvez nunca", deduz Dufayel, fitando a silenciosa companhia.














A moça do copo, em outros termos, prefere imaginar uma relação com alguém ausente do quadro a criar laços com os que estão presentes, que se justifica: "Ao contrário, talvez ela esteja tentando arrumar a bagunça na vida dos outros". E ela? E a bagunça na vida dela? Quem vai pôr em ordem?

Gerd Ziegler, em seu livro Tarô - Espelho da Alma, destaca a Princesa de Copas pela sua grande ternura e delicadeza e, pela análise da lâmina de Crowley, segura a taça com a tartaruga, um símbolo da proteção amorosamente proporcionada a si própria e aos outros.


Detalhe da Princesa de Copas do Tarô de Thoth, pintada por Frieda Harris.
O braço esticado simboliza a distância que tomou dela mesma, ressaltando o perigo de anular-se, sofrendo pela solidão e pelo conformismo de fazer o bem aos outros. A carta prevê novos casos sentimentais, embora inicialmente delicados. Aqueles que surgem forma lenta ou mesmo despercebida.


Dominique Pinon como o ciumento Joseph e Isabelle Nanty, como Georgette.

Devido a isso, como o destino é fabuloso, o Cupido continua sobrevoando Montmartre - veja o caso de Georgette e Joseph que, literalmente, abalou as estruturas do Deux Moulins - e começa a entender o recado do Eremita quando se depara com uma chance ao amor: num encontro forçado pelas circunstâncias, ela acaba ficando com o álbum de Nino.

A Morte traz o inesperado. Amélie vai até o Parque de Diversões para devolver pessoalmente o tesouro do rapaz. O sentimento vai se libertando como um suspiro. Ou melhor, como uma baforada próximo ao rosto.


A Morte do Tarô de Marselha com Amélie e Nino: mudanças e mudanças.

E ela está apaixonada. E ele gosta de estratagemas.
Ambos imaginam-se, cada um com suas fantasiosas expectativas.


Ambos estão tensos, mas Amélie permanece segura. Até o dono da quitanda (quase um Imperador; chato, mandão e dependente da mãe na hora de fazer as finanças) tem seu merecido susto e a certeza de sua loucura ao perceber invertidas as maçanetas do banheiro e escovar os dentes com o creme para os pés. Traquinagens de Amélie por destratar Lucien, o Louco - fiel entregador de compras e aluno de pintura de Dufayel. Pois é, Collignon. "Até as alcachofras tem coração".

Urbain Cancelier é Collignon, o dono da quitanda e Jamel Debbouze, o Lucien.

É Amélie quem facilita a resolução do enigma do fantasma a Nino, que vai até a cafeteria e encontra a garota arredia que desconversa com os gestos e vira água quando ele deixa o lugar.

Um toque do décimo oitavo, A Lua, arcano ilustra o ponto.
Ela imagina sua vida ao lado de Nino com todos os detalhes.


E um mal-entendido a faz desacreditar em milagres, pelo menos por um dia.
Amélie chora. Por amor.

Mas a mensagem de Raymond é clara - "Vá em frente, pelo amor de Deus”. Nino e Amélie, frente a frente. Eis os Enamorados, que se tocam no silêncio, no auge da história. A luz do Eremita indicou o caminho.


Cavaleiro e Pajem de Copas - Morgan-Greer Tarot

A Roda influenciou cada passo da história, que vai contra a mania de grandeza e demonstra o valor da pequenez ao ater-se aos detalhes. Aliás, quanto aos detalhes, deixo a dica: quando passear pelas cartas de um tarô, atente aos detalhes de cada uma delas. A cenografia, as texturas, o pano de fundo, as sombras, o jogo de cores e até a semelhança física entre os desenhos e os atores. Amélie é um filme mágico, riquíssimo tanto em mensagens sutis quanto em beleza visual, claro.

Esqueça a Nouvelle Vague”, sugere o diretor. O aspecto visual - e até mesmo ideológico - do filme é ambíguo. A atmosfera é irreal; a estética, atemporal. Mas aqui não há espaço para o tédio. Cada personagem tem papel crucial na rede de influências de Amélie. Não, não é nada blasé. A fotografia é belíssima e muito bem trabalhada, um dos grandes destaques. O vermelho e o verde dominam. A trilha sonora, concebida por Yann Tiersen, é perfeita: tonifica o estilo cenográfico utilizado por Jeunet temperando a comédia com boas doses de drama. O acaso acompanhou o roteiro, o elenco e as decisões da equipe técnica. Nas palavras de Bruno Delbonnel, diretor de fotografia, “Amélie é uma história feliz”.

O metrô, o velho cego e Amélie ao som de Edith Piaf.
Apresenta ainda o narrador que parece comentar um assunto simples, porém profundo; descontraído, mas com pitadas de suspense que prendem a atenção. Um toque incomum que faz qualquer pessoa esquecer do tempo, assim como a leitura de um velho livro da infância. Ou mesmo como brincar com as cartas de um baralho.

É inovador e cativante, recomendado a todos por ser extremamente polissêmico e aquecido pelos humores e paixões de uma criança. Curiosa a forma com que todos os coadjuvantes têm seus destinos transformados pelas atitudes dela. A inocência, conscientemente preservada e transmitida em todos os momentos, faz com que sejam validadas as emoções e os minutos preciosos de se render aos prazeres da vida. O destino se encarrega do melhor. Basta querer.





Leo



























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